Sobras de guerras alimentam a cultura kamikaze que se instala nos EUA
Objetos voadores controlados remotamente, os agora populares drones, põem em risco espaço aéreo norte-americano
Heloísa Villela heloisa.vilela@brasileconomico.com.br
O que deve fazer o piloto de um voo comercial quando está na metade da decolagem, ou se aproximando da pista na hora do pouso, e vê um objeto do tamanho de uma lata de lixo grande se aproximar rapidamente? Essa preocupação vai entrar na já longa lista de cuidados que os pilotos devem ter nos dois momentos mais críticos de qualquer voo. A decolagem e a aterrissagem. A reportagem publicada na última semana, pelo jornal The Washington Post, é alarmante: dados da Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA) mostram que nos últimos seis meses os pilotos do país passaram por 25 situações como esta, de quase colisão com objetos voadores controlados remotamente, os agora populares drones.
Os sustos, por enquanto, não tiveram consequências fatais, apesar de a maior parte das situações ter acontecido em aeroportos de muito movimento: em Los Angeles e aqui em Nova York. Mas agora que o governo se prepara para abrir o espaço aéreo a diversos tipos de atividades com drones, tudo é uma questão de tempo. Alguns poucos departamentos de polícia municipais já têm seus drones. San Jose, na Califórnia, comprou um escondido do conselho municipal e agora está sob sérias críticas da população. Mas diversos departamentos de segurança já entraram na fila para comprar seus aparelhos. Na agricultura, no cinema, no jornalismo e até na entrega de mercadorias, como quer fazer a empresa Amazon, já existem projetos de trabalho que contam com os drones e aguardam apenas as regras que devem sair no ano que vem. Segundo lei aprovada no Congresso, o FAA tem até setembro de 2015 para apresentar as normas que vão regulamentar a invasão do espaço aéreo por esses objetos voadores não tripulados.
Se a experiência longe de casa serve de base para o uso dos aparelhos nos Estados Unidos, então este país tem mesmo o que costumo chamar de “cultura kamikaze”. Se atira à morte sem pensar duas vezes. Não com a velocidade dos pilotos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Mas avançando a realidade no tempo, é mais ou menos a mesma coisa. Depois de muita luta e de vários pedidos dentro da Lei de Liberdade de Imprensa, o mesmo Washington Post levantou o histórico dos drones usados para lançar mísseis no Afeganistão e no Iraque. São mais de 50 mil páginas de relatórios sobre acidentes. Entre setembro de 2001 e dezembro de 2013, foram registrados mais de 400 acidentes com drones das forças armadas norte-americanas.
Por sorte, muita sorte mesmo, eles não mataram ninguém (ou ao menos não ficou um registro oficial de civis mortos nesses acidentes). Mas muitos caíram em vilas, se chocaram contra casas, estradas, fazendas e um deles bateu em um avião de transporte de carga da própria força aérea norte-americana deixando um rombo na fuselagem. O piloto já estava bem próximo da pista no momento da trombada e todo o vazamento de combustível e a fumaça não impediram o pouso. Mas foi por pouco.
Os Estados Unidos treinam pilotos de drones em número cada vez maior. A sede dos treinamentos fica na Base Aérea de Holloman, em Albuquerque, no Novo México. Visitei a base no ano passado com um grupo de jornalistas estrangeiros. Os oficiais se desdobraram para mostrar as vantagens e a precisão dos dois drones mais usados pelos militares norte-americanos: o Reaper e o Predator. No centro de treinamento, dois pilotos sentados lado a lado controlavam o simulador. Um voava o aparelho e outro ficava de olho nas imagens que as câmeras da aeronave captavam do solo. A primeira turma de pilotos da aeronáutica se formou em 2009 e tinha 136 alunos. O número de novos pilotos aumenta a cada nova formatura. Este ano, foram mais de 700. É muita gente preparada para voar drones. E eles não vão atuar eternamente nas guerras, longe de casa. Haverá um mercado doméstico para empregar essa gente.
Os relatórios analisados pelo Washington Post mostram os riscos que os drones apresentam, mesmo quando não ameaçam outras aeronaves. Muitas vezes o piloto voa de cabeça para baixo e nem percebe. Ele está em uma sala com ar condicionado, longe do aparelho. Não corre risco algum se ele cair. Não está no ar, vendo as montanhas ao longe e as vilas abaixo. Eventualmente, o voo de cabeça para baixo se torna um acidente. Outras vezes o piloto simplesmente perde contato com o drone e ele cai. Essa “precisão” toda vai tomar conta do espaço aéreo americano em breve.
Aqui a população também já teve uma prévia do que pode vir por aí... Em abril, um drone do exército norte-americano que pesava 170 kg caiu na Pensilvânia, ao lado do pátio de uma escola de ensino fundamental, poucos minutos depois que as crianças tinham ido para casa. Imagine o que poderia ter acontecido se fosse mais cedo. Ou na hora do recreio.
As forças armadas dos Estados Unidos têm hoje cerca de 10.000 drones de vários tamanhos, na faixa de meio quilo a 15 toneladas, e planeja decolar os aparelhos em 110 bases do país, distribuídas em 39 estados. As polícias municipais também querem usar drones para monitorar situações perigosas. Na fronteira com o México, já existe uma pequena frota patrulhando o movimento de possíveis imigrantes. A nova indústria, que investiu pesado no lobby para aprovar a lei no Congresso abrindo o espaço aéreo aos drones, calcula que vai gerar 100 mil novos empregos até 2025 e movimentar uns US$ 80 bilhões de dólares, incrementando a economia do país.
Isso me lembra o crescimento da exploração de gás de xisto com a tecnologia conhecida como fracking. Um processo que lança uma grande quantidade de água misturada a um conjunto de produtos químicos secretos no subsolo para liberar o gás preso nas bolhas da rocha. As casas mais próximas dos campos de perfuração com fracking já sabem o que acontece. Os poços foram abandonados. A água lá dentro borbulha de tanto metano. Já não serve para beber, tomar banho ou cozinhar. Mas a cultura kamikaze é assim mesmo. Vai fazendo para depois ver o que acontece.