Informe New York - Democracia na alimentação
Uma proposta verdadeiramente revolucionária para garantir o direito à alimentação:
combater a fome garantindo maior equilíbrio ecológico e dieta mais saudável para todos. Porém, por ser revolucionária, a proposta exige mudança completa dos modelos e do paradigma de produção agrícola vigente no mundo há décadas. Nada mais, nada menos, foi o que o professor belga, Olivier de Schutter, sugeriu aos 192 países representados nas Nações Unidas. Relator especial da ONU para o direito à alimentação, o professor não tergiversou. Foi direto ao ponto: "A principal deficiência da economia alimentar é a falta de democracia".
A frase reúne os principais conceitos do trabalho de Schutter, resultado de seis anos de viagens pelo mundo para entender o funcionamento da produção e da distribuição de alimentos, explicar porque tanta gente ainda passa fome no planeta e descobrir como assegurar que todos tenham direito à alimentação. A primeira conclusão é a mais fácil: comida não falta. Ao menos por enquanto. O que se produz hoje é suficiente para alimentar o planeta.
Ainda assim, 165 milhões de crianças são tão malnutridas que não desenvolvem o potencial físico e cognitivo que possuem. Para não falar dos outros 2 bilhões de pessoas que têm acesso à comida, mas não ingerem a quantidade mínima de vitaminas e minerais essenciais para se ter saúde.
Olivier de Schutter dedicou os últimos seis anos aos estudos da cadeia alimentar que leva o que se produz no campo à mesa de quem tem como comprar comida, no próprio campo ou nas cidades. O relatório que ele apresentou, agora, à ONU, pode-se chamar de bombástico. Mas foi recebido com o silêncio praticamente absoluto da grande imprensa mundial. Com a maior tranquilidade, o professor diz que é preciso mudar completamente o sistema que privilegia as grandes empresas monocultoras e incentivar os pequenos investimentos que, além de empregar mais mão de obra, diversificam a produção.
O relatório cita a "Revolução Verde", o avanço tecnológico dos últimos 50 anos que permitiu o aumento da produção com base na mecanização intensa, na irrigação e no uso de pesticidas e fertilizantes. De fato, o emprego dessas novas armas aumentou em muito a produtividade de cada metro quadrado plantado. Entre 1960 e 2000, a produção de alimentos aumentou bem mais rápido do que o crescimento da população. Mas essa revolução não reduziu a fome. Mais milho, mais soja e mais trigo no mercado não significa menos gente passando fome no planeta. Revolução para quem, então?
Para os gigantes da agricultura. Os donos dos produtos e, mais e mais, das terras. A concentração de terra no campo se acelerou, os camponeses desempregados foram expulsos para as cidades. Os problemas urbanos explodiram enquanto a produção no campo aumentou à custa de produtos químicos que acabam com o solo e poluem a água, prejudicando a saúde de todos e destruindo a fonte de alimentação dos peixes. Eu fico imaginando os últimos 50 anos e os próximos 50 passando diante dos nossos olhos em uma sequência bastante acelerada, mas paro o filme antes de chegar aos últimos fotogramas.
O estudo, agora nas mãos da ONU, recomenda uma nova filosofia. Pensar a agricultura de olho na distribuição (estima-se que um terço do que é produzido no mundo vai pro lixo porque se estraga ou se perde na teia da distribuição), na promoção de mais igualdade no campo, na qualidade dos alimentos e na saúde geral do planeta. É o que muitos cientistas hoje chamam de agroecologia. Se não prega a abolição completa dos grandes latifúndios monocultores, o professor ressalta a necessidade de incentivar as pequenas propriedades.
Apesar de não dar nomes aos bois, ele critica o sistema de patentes que garantiu o monopólio de sementes a grandes empresas como a Monsanto e a Dow Chemical. Sementes que, ao contrário das demais, sobrevivem aos pesticidas mortíferos das mesmas empresas e que são estéreis. Não geram as sementes da safra seguinte. Para replantar, é preciso comprar uma nova remessa de sementes da mesma empresa. Assim como esgota os nutrientes do solo, esse sistema de produção desequilibra a distribuição de renda e de alimentos, polui os rios e mares, não ajuda em nada o combate à fome e, a continuar nesse ritmo, produzirá fotogramas assustadores no filme que promete não ir muito longe.
A saída, diz o estudo, é incentivar o plantio variado, próximo aos centros de consumo. Uma experiência que está se multiplicando em alguns países. Aqui nos Estados Unidos, virou moda plantar comida no quintal, fazer compras nos chamados farmer's markets, mercados do produtor nos quais, em princípio, as frutas, verduras e legumes vão direto do caminhão do agricultor para a mesa do consumidor.
Me lembro bem da época em que as associações de moradores do Rio de Janeiro se jogaram nessa experiência. Os vizinhos se organizavam, contatavam os produtores das serras e subúrbios, e traziam tudo, uma vez por semana, já organizado de acordo com o pedido de cada um. Não era uma feira. Era uma venda direta.
O professor Schutter cita exemplos que, na opinião dele, estão dando certo. Em Montreal, no Canada, a prefeitura administra vários jardins comunitários para a produção local de alimentos. Ele se disse impressionado com os resultados do programa Fome Zero no Brasil que dá apoio à produção familiar como forma de abastecer as cidades.
Acima de tudo, ele destaca o caráter local dos programas bem sucedidos e a importância de que eles partam das sugestões de cada grupo ou comunidade. Por isso, o título de revolucionário. Ele defende a democracia no campo como única saída no real combate à fome e na manutenção da vida.