Informe New York - Bombeiros ou incendiários
24/02/14 11:30 | Heloísa
Villela (heloisa.vilela@brasileconomico.com.br)
Visivelmente irritado, eu diria até revoltado, o
professor emérito de estudos russos da Universidade de Nova York e de
Princeton, Stephen Cohen analisou, na última semana, o desenrolar da crise na
Ucrânia
A falta de contexto com que a crise é apresentada
na mídia norte-americana faz o sangue do professor ferver. No programa matinal
de rádio DemocracyNow!, ele chamou de incendiário quem hoje posa de bombeiro: -
As autoridades ocidentais, que têm responsabilidade sobre o que está
acontecendo e por isso mesmo têm sangue nas mãos, não estão assumindo essa
responsabilidade.
É bom lembrar que a Ucrânia não vive sob uma
ditadura. Um regime de exceção. O país tem, ou tinha, um governo democrático,
eleito nas urnas. Em novembro passado, diante de uma situação econômica
difícil, o governo foi encurralado pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
Para receber ajuda financeira do ocidente, o presidente Viktor Yanukovych
recebeu um ultimato da União Europeia: escolher entre a Europa e a Rússia. E
quem propôs um meio termo? Os diplomatas de Washington? Os negociadores de
Bruxelas? Não. Foi o vilão, o demoníaco, o ex-KGB Vladimir Putin (George Bush
pai não era constantemente tratado como o ex-chefão da CIA). Putin ofereceu um
pacote tripartite de ajuda financeira, com a participação da Rússia, dos
Estados Unidos e da Europa.
Bruxelas e Washington descartaram a proposta e
mantiveram a ameaça. Com a faca no pescoço, de olho na Grécia de joelhos com as
medidas impostas pela ajuda financeira do Ocidente, Yanukovych tomou partido.
Decidiu ficar com o suporte da Rússia.
A Ucrânia é um país dividido. Sempre foi. Parte da
população tem o russo como primeiro idioma, tem laços culturais e até
religiosos mais fortes com Moscou. Sente-se mais à vontade na parceria com a
Rússia. Outra parte do país tem os olhos voltados para a Europa. O ocidente
decidiu apostar nessa divisão para levar adiante um processo que começou os
anos 90. Desde o governo Bill Clinton, a política da Casa Branca para a região
tem sido atrair as ex-repúblicas soviéticas o mais rapidamente possível para a
área de influência econômica de Washington. A Ucrânia, encravada entre a
Polônia e a Rússia, é uma joia valiosa para a coroa norte-americana.
Por isso a conversa telefônica entre o embaixador
dos Estados Unidos em Kiev e a mais alta funcionária do departamento de estado
americano para região, vazada para a imprensa, tem tanto significado. Claro que
por aqui o grande destaque foi para o palavrão que Victoria Nuland usou. Aquele
famoso "a União Europeia que se f---". A imprensa norte-americana
passou direto pelo real conteúdo da conversa. Nela, Nuland e o embaixador
discutiram os detalhes da política ucraniana. Decidiram quem deveria fazer
parte de um governo de coalização a ser formado para substituir o presidente
eleito. Em português claro, como disse o professor Cohen, eles tramavam um
golpe de estado. Um golpe vitorioso. Na sexta-feira, o presidente Yanukovych
assinou o acordo para antecipar as eleições (estavam marcadas para o ano que
vem) e formar a tal coalizão bolada em Washington.
No nosso quintal, nos anos 60, os métodos eram
outros. Golpe de estado, ditadura no porrete, tortura com requintes de
crueldade assimilados na famosa Escola das Américas e por aí vai. Agora, são
outros os meios. Promover a divisão interna, desestabilizar o país, denunciar a
violência como insustentável, defender a "volta" da ordem e do
respeito aos direitos humanos sob a égide de algum nome escolhido e sancionado
em Washington.
O e-mail que me chega do Departamento de Estado é
apenas mais um exemplo da farsa. Assinado pelo Secretário de Estado John Kerry,
ele tem aquele tom arrogante e inconfundível de quem dita as regras: "É
com raiva e angústia que vemos a renovação da violência nas ruas de Kiev",
dizia ele na quinta-feira passada. "O Presidente Yanukovich tem que
negociar seriamente com os líderes da oposição imediatamente para estabelecer
um governo interino que tenha amplo apoio. Essa é a única maneira de dar início
às difíceis porém essenciais reformas constitucionais e econômicas de que a
Ucrânia necessita".
O tempo todo, Washington condena o governo da
Ucrânia, a polícia, a tentativa de conter os protestos. Nunca diz nada a
respeito do uso de armas contra os policiais, a destruição de prédios públicos,
a tentativa de ocupação do parlamento. Assunto espinhoso. Mas se um grupo de
manifestantes do Occupy tivesse desistido de simplesmente ficar acampado em
praça pública e tivesse marchado para a Casa Branca com pedras e paus, tivesse
ameaçado ocupar qualquer prédio do governo norte-americano, o que teria feito o
governo Obama? Permitido a livre manifestação dos descontentes?
Pior. Washington inflama e incentiva a discórdia e
a violência. Ao condenar, constantemente, o governo e a tentativa de conter os
protestos, a Casa Branca oferece um ombro amigo à oposição. Legitima e oferece
apoio. Anunciou sanções e prometeu para breve um embargo à venda de armas.
Estabeleceu quem está certo e quem está errado. E na miopia costumeira que
acomete a diplomacia norte-americana, já que não enxerga dois anos adiante,
Washington segue em frente criando instabilidade, incerteza e conflitos sem ter
a menor ideia a respeito das consequências.
Washington tem pressa. Melhor um golpe agora,
orquestrado com a aparência de solução para as insatisfações da população.
Melhor botar logo as mãos em mais uma joia para a coleção. A Ucrânia mergulha
no caos, as consequências são imprevisíveis. E a possibilidade de solução
democrática, de respeito ao calendário eleitoral, de permitir que a população
discuta seus problemas e decida seu destino... Isso tudo é bem bonito no papel.
Mas fica para uma próxima oportunidade.