A indigestão do gato chinês
cor do gato de fato
nunca importou. Há mais de três décadas o felino vem cumprindo a sua missão:
caçar ratos
Florência Costaflorencia.costa@brasileconomico.com.br
A partir de 1978, com as reformas introduzidas por Deng Xiaoping, a
China passou a crescer vertiginosamente ao som do mantra “enriquecer é
glorioso”. Mas no meio do caminho houve um massacre: o da Praça da Paz
Celestial, que na quarta-feira, 4, completou 25 anos. Os protestos contra a
falta de liberdade foram simbolizados pelo famoso anônimo que enfrentou um
tanque de guerra. Nos últimos dias a mídia vem noticiando que há uma espécie de
amnésia sobre essa tragédia entre os chineses em geral.
O grito pela democracia foi sufocado. Mas os chineses têm saído às ruas
furiosos por outros motivos: o fosso entre ricos e pobres da China urbana e da
China rural e a catastrófica poluição que inferniza suas vidas são combustíveis
que alimentam milhares de protestos a cada ano em todo o país.
Hoje, o gato guloso sofre de indigestão. Na dieta prescrita, ênfase na
qualidade e não na quantidade do que se come. Em novembro do ano passado o
governo anunciou um conjunto de medidas para reformar a economia chinesa. Logo
depois assumia o novo timoneiro, Xi Jinping, 60 anos. O governo se viu obrigado
a incluir no seu cardápio mais empregos, menos desigualdade de renda, e uma
campanha contra a corrupção.
A economia deverá crescer 7,5% nesse ano, já num ritmo mais desacelerado
do que antes. Pequim está determinada a focar sua expansão econômica no consumo
doméstico. Agora, não se trata de caçar indiscriminadamente. É preciso
abocanhar os ratos certos. É preciso mostrar serviço para a nova classe média e
para os que aspiram a chegar lá.
Os chineses buscam hoje um crescimento que traga benefícios e qualidade
de vida para a sua população, que hoje é obrigada a sair às ruas de máscara. O
irrespirável ar das maiores cidades chinesas já foi batizado de “ar-pocalípse”.
A degradação do meio ambiente foi um dos preços pagos nos últimos 30 anos pelas
altas taxas de crescimento que fez o país se transformar no maior consumidor de
energia e na segunda maior economia do mundo.
A desigualdade de renda na China seria até maior do que a dos Estados
Unidos, segundo estudo publicado por dois sociólogos chineses da Universidade
de Michigan (EUA) e da Universidade de Pequim. A diferença entre ricos e pobres
praticamente duplicou em três décadas (entre 1980 e 2010). “Essa desigualdade
de renda é fruto de fatores estruturais atribuídos ao sistema político chinês,
sendo que o mais determinante de todos é a disparidade rural-urbana e a
variação regional de bem-estar econômico”, explicam os sociólogos Yu Xie e
Xiang Zhou.
Um dos assuntos que mais pega fogo na China de hoje é a poluição. Na
primeira semana de maio, moradores da cidade de Hangzhou, no Leste do país,
protestaram violentamente contra um incinerador de lixo: carros da polícia
foram incendiados. Dez manifestantes e 29 policiais ficaram feridos. Os
chineses estão cada vez mais dispostos a desafiar o governo quando sua saúde
está em risco.
As mortes prematuras e os problemas de saúde causados pela poluição
atmosférica custam até US$ 300 bilhões anuais à China, segundo um relatório do
Banco Mundial. A poluição provoca 500 mil mortes por ano na China, revela um
artigo publicado em dezembro na conceituada revista médica britânica The
Lancet.
Para evitar o pior, o governo começou a se mexer e anunciou uma “guerra
à poluição”. No final de abril, a China aprovou emendas à lei de proteção
ambiental, com penas mais rígidas para poluidores. O premiê Li Keqiang
reconheceu em meados de março que a primeira coisa que as pessoas fazem ao
acordar de manhã é checar o índice de partículas finas de matéria no ar. Na
segunda-feira, 2, o governo anunciou que a China vai estabelecer um teto para
suas emissões de CO2 a partir de 2016.
O presidente Xi Jinping prometeu um país com “céu azul” e “águas
claras”, ao anunciar que a China vai investir em inovações para para proteger o
meio ambiente. Foi uma resposta ao descontentamento geral. Pesquisa recente
divulgada pelo Laboratório de Pesquisa de Opinião Pública, da Universidade Jiao
Tong, de Xangai, revelou que mais da metade dos chineses (60%) esperam que o
governo dê prioridade à proteção ambiental ao impulsionar a economia.
Outro sintoma de que a válvula da panela de pressão chinesa não está
dando conta do recado são os frequentes atentados terroristas que Pequim afirma
serem cometidos por grupos radicais islâmicos, principalmente da região de
Xinjiang, no noroeste do país. Lá vive a população da etnia Uigur que fala uma
língua semelhante ao turco, reza por Alá, e sente-se menosprezada pelos
chineses Han, a etnia majoritária do país. Xinjiang vive uma situação
contraditória.
Desde os anos 90 Pequim vem promovendo a modernização na região, com
obras de infraestrutura. Mas com o surgimento de oportunidades, não foram os os
Uigurs que se beneficiaram. Foram os chineses Han, tecnicamente qualificados,
que migraram aos milhões para Xinjiang, abocanharam os melhores empregos e
tornaram-se maioria na região. Isso alimentou as desigualdades econômicas entre
etnias e entre a China rural e a China urbana.
No dia 22 de maio, um ataque com explosivos em um mercado de Urumqi,
capital de Xinjiang, a 2.500 km de Pequim, matou 43 pessoas e feriu 90. Em
março, um grupo havia matado a facadas 33 pessoas em uma estação de trem em
Kunming, na província de Yunnan, no sudoeste do país. Os ataques do passado em
Xinjiang eram direcionados contra representantes do Estado. A atual onda de
violência transformou espaços públicos em alvos. O objetivo é ter o maior
número de vítimas e mais impacto.
Os ataques começaram a se espalhar para fora de Xinjiang. No ano
passado, um atentado aconteceu no coração da capital chinesa: três Uigurs
dirigiram um veículo na direção de uma multidão em um ataque suicida perto da
Cidade Proibida, no centro de Pequim, matando dois turistas, além de si
próprios.
A maior parte dos que promovem ataques são jovens sem empregos os com
ocupações temporárias, segundo estudiosos da região. O presidente Xi Jinping
prometeu aumentar a renda e os gastos nas áreas com minorias muçulmanas em um
esforço para dirimir tensões étnicas. A mensagem da Primavera Árabe, com seus
jovens revoltados, acendeu a luz vermelha em vários lugares do mundo, inclusive
em Pequim. Se dessa vez o gato vai ser eficiente no cumprimento de sua nova
tarefa, só o tempo dirá.