Os
"Nem-Nem" da Índia
Indianos sonham entrar
para o clube dos que usufruem de alguma estabilidade econômica. Nem são ricos,
nem são ainda da classe média propriamente dita
florencia.costa@brasileconomico.com.br
Imagine uma massa humana duas vezes e meia maior do que a nossa população indo
às urnas. Isso mesmo. Durante cinco semanas, de 7 abril até 12 de maio, 550
milhões de indianos saíram de suas casas para ir às seções eleitorais votar.
O gigantesco processo eleitoral chegou ao fim. Hoje, a maior democracia
do planeta anuncia ao mundo o resultado. Os indianos votaram em massa. O país
registrou um recorde histórico de comparecimento às urnas: 66,38%. Foram 130
milhões a mais de eleitores do que no pleito passado, em 2009. O último recorde
havia sido registrado há exatamente 30 anos (64,01%), com o país
traumatizado pelo assassinato da primeira-ministra Indira Gandhi pelos seus
dois guarda-costas.
O eleitorado de hoje é muito diferente daquele de 2004, quando o
Partido do Congresso venceu a eleição e indicou o tímido economista Manmohan
Singh ao cargo de primeiro-ministro. Duas décadas após a reforma econômica - da
qual o próprio Singh foi seu arquiteto como ministro das Finanças em 1991 - há
uma nova Índia. Ela não é mais dividida somente entre pobres e ricos. Milhões
deixaram de ser miseráveis e transformaram-se em um exército de aspirantes.
São os que sonham entrar para o clube dos que usufruem de alguma
estabilidade econômica. São os “ nem-nem” da Índia. Uma categoria que os
analistas do país batizaram de NRMB (“Not Rich, Not Middle Class, Not Below the
Poverty Line”): ou seja, nem são ricos, nem são ainda da classe média
propriamente dita, nem engrossam mais as fileiras do inferno dos miseráveis.
São trabalhadores informais como pintores, carpinteiros e seguranças de
condomínios residenciais e prédios comerciais, empregados domésticos,
vendedores ambulantes.
O que há de novo na Índia é o poder emergente desse “meião” -
que flutua entre o topo e a base da pirâmide. Trata-se de um exército - que
alguns analistas calculam em mais da metade dos 1,2 bilhão de indianos. Um
imenso contingente que ganhou mais consciência política e que se tornou mais
exigente. No início do governo do economista Manmohan Singh, que agora se
despede da política, havia uma ideia de progresso. Mas com o tempo, o otimismo
foi sendo corroído e o negativismo inundou a percepção dos indianos. No final
de seus 10 anos no poder, o Partido do Congresso passou a ser visto como fraco:
fortaleceu-se a idéia de que no mínimo fazia vistas grossas para a corrupção
dos aliados políticos e de seus integrantes menos honestos. Quanto ao próprio
Singh, justiça seja feita, ele nunca foi acusado pessoalmente de corrupção.
Nos últimos tempos já era comum ouvir da boca dos indianos
“Nem-Nem” que a “Nova Índia” só sabia sorrir para um grupo selecionado, acima
deles: a classe média ocidentalizada e os ricos. Mas algum benefício do
crescimento econômico eles tiveram. Os “Nem-Nem” foram, por exemplo,
protagonistas da chamada Revolução da Telecomunicação na Índia, que hoje tem
933 milhões de usuários de celular, segundo lugar no mundo, depois da China.
Os “Nem-Nem” foram alvo de uma maciça campanha eleitoral por
mensagens de texto. Rahul Gandhi, o candidato do Congresso, havia tentado
fisgar o voto dessa gigantesca categoria e anunciara em janeiro que focaria
neles durante a sua campanha. Mas muitos deles se identificaram com Narendra
Modi, do BJP, o principal partido de oposição. O próprio Modi, se não tivesse
ascendido na vida, poderia ser hoje um “Nem-Nem”. Ao contrário do brâmane Rahul
(herdeiro da dinastia política mais poderosa do Sul da Ásia), Modi não é de
casta alta (mas sim intermediária, como muitos “Nem-Nem”). É filho de um
vendedor de chai, o chá com leite e especiarias que corresponde ao cafezinho
para o brasileiro. Diferentemente da elite tradicional indiana e exatamente
como os “Nem-Nem”, Modi não se sente confortável com a língua inglesa.
A campanha de Modi criou com sucesso uma atmosfera aspiracional
em torno do estado que ele governa, o Gujarat, projetado como uma espécie de
Shangri-Lá da infraestrutura, onde nunca há apagões ou falta d’água. Seus
correligionários espalharam mitos que evocaram uma imagem de herói hindu que
acorda às 5h30 da manhã para fazer Yoga e meditação, e é tão energético que só
precisa dormir cinco horas por noite.
Singh deixa o cargo com alguns arrependimentos, como o de não
ter aprovado a reforma tributária e não ter conseguido abrir o mercado de
seguros para os investidores estrangeiros. Mas para os “Nem-Nem” isso não
contou. Para eles, a marca negativa do governo Singh foi, além da aceitação da
corrupção, a incapacidade de criar empregos e de segurar a inflação (mais de 8%
nos últimos dois anos).
Para os mais pobres, pesou o fato de que o governo passou a
adotar, na sua fase final, uma atitude tecnocrática com relação à pobreza,
perdendo o foco social, observou Shiv Visvanathan, um dos mais importantes
sociólogos indianos. Um dos maiores exemplos disso aconteceu em 2011, quando o
governo tentou medir a pobreza, para focar os benefícios em um público alvo: o
indiano que ganhasse por dia o equivalente a US$ 0,60 por dia nas cidades e US$
0,50 no campo não seria mais considerado pobre. A linha da pobreza ganhou
rapidamente o apelido de “ linha da fome”. E o governo ganhou a imagem de
insensível.
A ideia de que o governo seria mole com os corruptos se
cristalizou com vários escândalos. Ganhou força a convicção de que recursos
nacionais, como minério-de-ferro, carvão e florestas, estavam sendo usados
inescrupulosamente pelas grandes corporações, em conluio com elementos corruptos
do governo. Um dos escândalos que contribuiu para chamuscar mais a imagem do
governo de Singh foi a desorganização e as denúncias de corrupção que cercaram
a realização dos Jogos da Comunidade Britânica em Nova Delhi, em outubro de
2010, que reuniu mais de 6 mil atletas de 71 países. Ali, naquele momento, o
Partido do Congresso já começava a perder o jogo.