Reportagens
Regime militar salvou o Brasil de se
tornar uma grande Angola
Mas não se deve combater o mito guerrilheiro com outro mito — o do
Exército salvador da pátria, que, a cada ameaça comunista, é chamado a salvar a
democracia a golpes de Estado
José Maria Silva
E assim foi preso
Carlos Marighella, que ficaria internacionalmente famoso como autor do “Manual
do Guerrilheiro Urbano”: em vez de encontrar Taciano Fernandes, companheiro de
subversão, preso às duas e meia da madrugada, seu infeliz encontro em Santa
Teresa, pouco depois das seis horas da manhã, foi com um “magote de policiais
que voaram em sua direção como a tarrafa sobre o cardume”, na descrição de seu
biógrafo Mário Magalhães. Foi jogado num carro, já apanhando, e levado para a
Polícia Central do Rio de Janeiro, onde foi recebido com murros no rosto, no
peito e nas costas, em meio a impropérios. Ao ser entregue ao chefe de
Segurança Social, Serafim Braga, recebeu mais uma rodada de golpes: socos no
estômago e pancadas de canos de borracha, em meio a perguntas para que
delatasse seus companheiros. Não satisfeitos, seus algozes passaram a açoitá-lo
nos rins, nas costas e nas nádegas.
“Cinco sessões de
espancamentos depois”, conta Mário Magalhães, “encaminharam o comunista
renitente para uma sala exclusiva para tortura”, onde nada lhe foi dado para
comer, até que, no início da tarde, o chefe de Segurança Política, Antônio
Emílio Romano, “comandou outra sova concentrada na cabeça: o sangue escorreu
pelo nariz e Marighella desmaiou”. Depois de um curto descanso da tortura,
enquanto policiais vasculhavam a casa onde morava de aluguel, Marighella voltou
a sofrer novo corretivo. Depois de 12 horas dessa tortura inicial na Central de
Polícia, seus captores desistiram de arrancar-lhe qualquer informação relevante
e ele foi levado para o terror de todos os subversivos — o quartel do Morro de
Santo Antônio, espécie de sétimo círculo do Inferno de Dante.
Tão logo foi jogado
para fora do carro no pátio mal iluminado, Marighella foi cercado por
investigadores com seus cigarros acesos. Como demônios à roda, envoltos na
fumaça do tabaco, que Marighella detestava, recomeçou a tortura: murros,
pontapés e a brasa dos cigarros queimando a pele. Para completar, um alfinete
de gravata foi enfiado em seus dedos, debaixo das unhas, uma por uma,
metodicamente, até chegar à última, deixando suas mãos completamente
ensanguentadas e inchadas. Como se não bastasse, os torturadores agarraram seus
testículos e, a cada pergunta não respondida, apertavam com mais força. A dor
se tornou insuportável e Marighella desmaiou. Já era madrugada de sábado e
estava sem comer desde a manhã de sexta-feira. Mesmo assim, a manhã o aguardou
com novas mudanças de cárcere e, em cada uma delas, mais espancamentos: murros,
pontapés, cassetes, canos de borracha. “A dor lancinante de uma hérnia,
castigada pelos golpes, quase o enlouqueceu”, conta Mário Magalhães.
Carlos Marighella foi
apenas um dos muitos prisioneiros políticos destroçados pela tortura, como
mostra seu biógrafo ao descrever o martírio de outros torturados: “As paredes
do quartel da Polícia Especial haviam ensurdecido com os berros desesperados de
Arthur Ewert, cuja loucura provocada pela truculência já se manifestava”. Para
tentar salvar o alemão Ewert das torturas, o advogado Heráclito Sobral Pinto
invocou a lei de proteção aos animais, mas pouco adiantou. O preso político
ficou confinado durante dez anos nas prisões brasileiras e, quando enfim foi
libertado, já estava irremediavelmente louco e terminou seus dias num hospital
psiquiátrico da Alemanha, seu país natal. Já o norte-americano Victor Allen
Baron, operador de rádio que tinha sido enviado pelo Komintern para fazer a
Revolução, foi poupado da loucura: depois de ter sido destroçado pelos
torturadores, foi atirado do terceiro andar do presídio onde estava sendo
interrogado, numa simulação de suicídio.
O nazismo verde-oliva dos “Comitês de Vingança”
Mas engana-se quem
pensa que essas torturas bárbaras tiveram lugar após o dia 31 de março de 1964,
que inaugurou, há exatos 50 anos, o regime militar no Brasil, reduzido por
historiadores e formadores de opinião à pecha de “ditadura militar”; na
verdade, essas torturas sofridas por Carlos Marighella e seus camaradas de
comunismo ocorreram não em 1964, mas entre o final de 1935 e o início de 1936,
durante o governo de Getúlio Vargas — o caudilho respeitado por Lula e pelo PT,
cuja ditadura sanguinária passou para os livros de história como “Revolução de
30”. Corretamente, por sinal, pois Vargas foi muito mais do que um mero ditador
— com truculência e paternalismo, ele consolidou a República, que não passava,
até então, de uma infeliz quartelada. De modo análogo, o regime militar de 1964
criou o Brasil moderno, urbano, expandindo a educação básica, o ensino
universitário e lançando as bases da pesquisa científica no Brasil.
Por isso, as “Comissões
da Verdade” que se espalham pelo País afora não passam de Comitês de
Vingança, ocupados em distorcer a história para engendrar, dentro dela, uma
espécie de nazismo verde-oliva, representado pelos militares que salvaram o
Brasil do terrorismo crônico ou da guerra civil em 1964. As novas gerações
foram e continuam sendo forçadas a pensar que os governos militares pós-64 são
a síntese de tudo de ruim que aconteceu na história do Brasil e que nada houve
pior do que isso. A se crer no tom horrorizado com que os formadores de opinião
repetem a expressão “ditadura militar”, tem-se a impressão de que nem mesmo a
escravidão se igualou em crueldade ao regime instaurado no País em 64. O regime
militar tornou-se uma espécie de marco zero da iniquidade nacional, projetando
sua sombra devastadora no passado e no futuro, como se fosse responsável
retroativamente pelo extermínio dos índios pelos bandeirantes, a escravidão do
negro pelo português e até, projetivamente, pelos escândalos de corrupção que
continuam assolando a República.
Prova disso é que a
ditadura civil de Getúlio Vargas tem um tratamento muito diferente nos livros
de história e nas páginas dos jornais. Enquanto o golpe de Estado de 24 de
outubro de 1930, que depôs o presidente Washington Luís, é retratado como
“Revolução de 30”, o golpe de Estado de 31 de março de 1964, que depôs o
presidente João Goulart, é reduzido a epítetos como “Ditadura Militar” e “Anos
de Chumbo”. Mas quem entregou Olga Benário, grávida, para as fornalhas nazistas
não foram os militares de 1964, mas o ditador Getúlio Vargas, quando combatia a
Intentona Comunista de 1935. O que não impediu Luiz Carlos Prestes, o santo
comunista de Jorge Amado, de inocentar Getúlio Vargas com seu apoio político,
pisoteando e cuspindo na memória da mãe de sua filha Anita Leocádia, hoje
historiadora, que, por sorte, escapou da morte.
O comunista Prestes e sua sentença desumana
Se tucanos e
pefelistas não padecessem de ingenuidade ideológica, o escopo investigativo da
Comissão da Verdade teria retroagido a 1930 e, então, o Brasil saberia como é
gélido o coração da ideologia de esquerda, que ama a abstração da humanidade
com tanto fervor que não hesita em sacrificar o ser humano concreto que não se
encaixe nesse ideal de perfeição. Apesar das torturas que seus camaradas
padeceram nas garras da polícia do Estado Novo de Vargas (da qual ele próprio
fora poupado, por ser militar) e da prisão da judia Olga Benário, sua mulher,
entregue aos nazistas aos sete meses de gravidez, Luís Carlos Prestes perdoou
Vargas em nome do ideal comunista desossado de gente, por isso sempre pronto a
saltar por cima de cadáveres. Em 23 de maio de 1945, num comício no Estádio do
Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, depois de nove anos preso, Prestes defendeu a
união nacional em torno do ditador Getúlio Vargas e disse que defender sua
saída do poder, como pregavam os setores democráticos, seria uma deserção e uma
traição.
Dias depois, em 15 de
julho de 1945, desta vez no estádio do Pacaembu, em São Paulo, Prestes voltou a
defender Vargas, seu velho algoz, chamando de fascistas todos aqueles que
criticavam o ditador e defendiam o fim de seu regime para que fosse eleita
democraticamente uma Assembleia Nacional Constituinte. Prestes, ao contrário,
queria uma Constituinte com Vargas no poder, algo como uma Constituição de 88
tutelada por um presidente militar. O entusiasmo com que defendia o caudilho
gaúcho dividiu o próprio Partido Comunista. Alguns de seus camaradas não
conseguiam entender como um homem como Prestes, que tinha sido preso por
Getúlio e vira sua mulher judia ser entregue grávida à Alemanha de Hitler,
sucumbindo ao nazismo, podia, naquele momento, transformar-se em arauto do
ditador, tentando evitar a derrocada de seu regime, a ponto de apoiar uma Constituinte
tutelada.
Mas não foi apenas a
memória de Olga Benário que a ideologia comunista matou com a sua indiferença
pela vida humana. Antes de ser presa, a cúpula do Partido Comunista (PC)
executou Elza Fernandes, uma pobre moça do interior que, aos 16 anos, se
tornara amante de Miranda, então secretário-geral do partido. Desconfiado de
que ela estava sendo usada pela polícia para caçar e prender seus camaradas de
partido, Luiz Carlos Prestes lavrou a sentença de morte da Garota, como Elza
era conhecida. Como seus camaradas hesitassem em executar a sentença, Prestes
escreveu-lhes um duro bilhete, chamando-os de medrosos: “Fui dolorosamente
surpreendido pela falta de resolução e vacilação de vocês. Assim não se pode
dirigir o Partido do Proletariado, da classe revolucionária. (...) Por que
modificar a decisão a respeito da ‘garota’? Que tem a ver uma coisa com a
outra? (...) Com plena consciência de minha responsabilidade, desde os
primeiros instantes tenho dado a vocês minha opinião quanto ao que fazer com ela.
Em minha carta de 16, sou categórico e nada mais tenho a acrescentar”.
Diante da
determinação do líder maior do Partido Comunista, Elza foi transferida para uma
casa num local ermo de Deodoro, subúrbio do Rio de Janeiro, e a sentença foi
executada por quatro membros do partido. Depois de, inocentemente, fazer café
para os companheiros, ela foi estrangulada com uma corda e seu corpo foi
quebrado ao meio, até que os pés se juntassem ao pescoço, para que coubesse
dentro de um saco e pudesse ser enterrada no quintal da casa. Estava cumprida a
vontade de Luiz Carlos Prestes, o Cavalheiro da Esperança, um dos heróis da
Comissão da Verdade. Em seu favor, não se pode alegar nem mesmo o medo da
tortura ou da morte, já que era um soldado tarimbado e, como se veria depois,
foi preso com toda a dignidade de um comandante, sem passar pelas agruras dos
companheiros de infortúnio.
O genocídio comunista no Araguaia
No caso dos demais
comunistas, candidatos a passar pelo que Carlos Marighella passou nos porões da
ditadura Vargas, é até compreensível que eles quisessem afastar todas as
possíveis causas de sua prisão. E se Elza Fernandes, com sua ingenuidade
facilmente manipulável pela polícia, era uma dessas causas, quem pode acusá-los
por tentar salvar a própria pele esfolando a pele de terceiros? Confesso que
até entendo o desespero dos subversivos políticos que, perseguidos pela polícia
e temendo a tortura e a morte, entregavam um companheiro ou até mesmo o
eliminavam, numa tentativa desesperada de sobrevivência. O que não se pode
admitir é que, mesmo depois desse tipo de experiência, várias vezes repetida na
história, a esquerda jamais aprenda com seus próprios erros e continue
glorificando a luta armada, como se fosse possível construir uma sociedade
perfeita regada com o sangue de inocentes.
Com base nessa
arrogante cegueira ideológica, que desconsidera as fragilidades do homem
concreto, a esquerda cria mitos — como o nazismo verde-oliva que vai sendo
imposto pelas Comissões da Verdade. Ao mesmo tempo, como contraponto a essa
crueldade nazista dos militares, engendra-se, também falsamente, o impoluto
idealismo da geração de guerrilheiros que combateram o regime, hoje
transformados em verdadeiros santos nas páginas dos jornais e nos livros de
história. Já escrevi e repito: o regime militar de 64 é a muleta moral dos
intelectuais de esquerda — eles o acusam de todos os crimes para melhor
acobertarem os próprios. Começando pela guerrilha urbana e rural, o crack da
época, que aliciava adolescentes e jovens doidivanas para uma luta obviamente
suicida, cujos mortos deveriam pesar não apenas nos ombros de seus torturadores
e assassinos, mas também na consciência dos velhos dirigentes comunistas do
PCdoB — diretamente responsáveis pelos mortos na Guerrilha do Araguaia.
Só mesmo a insanidade
ideológica para levar um grupo de intelectuais a acreditar que seria possível
fazer a revolução comunista num País de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e
70 milhões de habitantes a partir do voluntarismo de 98 guerrilheiros,
praticamente sem armas, perdidos no meio da selva, na maioria estudantes
universitários urbanos, muitos dos quais nunca tinham tomado nem banho frio na
vida. O modelo era a Grande Marcha de Mao Tsé-Tung. Mas o Oriente é outro mundo
e a China faz fronteira com a Rússia, o que facilitava o apoio de Stálin à
guerrilha maoísta. Como contam Jon Holliday e Jung Chang na biografia “Mao: A
História Desconhecida”, a União Soviética tinha homens em todas as principais
cidades chinesas e fornecia armas, remédios e informações essenciais para a
sobrevivência do Partido Comunista Chinês.
O perigoso maniqueísmo ideológico
Com base nesse
aparato bélico e de espionagem, os soviéticos conseguiam sublevar camponeses em
diversas províncias chinesas e, antes mesmo de Mao iniciar a Grande Marcha, os
comunistas já contavam com um exército de 20 mil homens na China, tirados do
exército nacionalista de Chiang Kai-shek. Algo muito diferente do Brasil, um
país quase tão grande quanto a China, com uma cultura nada guerreira e, ainda
por cima, na área de influência dos Estados Unidos, que, obviamente, jamais
aceitariam de braços cruzados a transformação do maior país da América Latina
numa nação comunista. Para os Estados Unidos, uma coisa era permitir que uma
pequena ilha como Cuba se tornasse uma ditadura comunista; outra bem diferente
era aceitar que o mesmo ocorresse no Brasil. Se nem hoje a Rússia aceita que a
Crimeia deixe sua área de influência, como imaginar que o Brasil se tornaria
satélite de Moscou a partir da tresloucada aventura dos guerrilheiros do
Araguaia?
Todas as guerrilhas
de sucesso no mundo, inclusive a que é promovida pelas Farc na Colômbia, foram
feitas em regiões de fronteira, de preferência entre países rivais, permitindo
que os guerrilheiros, quando cassados pelas forças legais de seu país, pudessem
se homiziar temporariamente no país vizinho. Creio que a única guerrilha do
mundo totalmente ilhada na região central de um país, sem qualquer rota de fuga
decente, foi justamente a Guerrilha do Araguaia — o que mostra a insanidade
mental e moral de seus idealizadores. Os jovens que perderam a vida na
guerrilha armada, urbana ou rural, não eram heróis coisa nenhuma. Eram apenas
lunáticos — seduzidos para a morte pelos genocidas da própria esquerda que
formularam uma luta armada sem qualquer chance de vitória. E se o seu intento
lograsse algum efeito, ele não seria a implantação do socialismo, mas a eclosão
de uma guerra civil. Ou os empresários iriam dividir suas empresas; os
proprietários rurais, suas terras; a classe média, suas casas — tudo isso sem
luta? Se a guerrilha desse certo, o Brasil não seria uma nova potência
socialista — seria uma imensa Angola de miséria e sangue.
Não se constrói uma
nação com base no maniqueísmo ideológico, que aniquila o senso crítico e
infantiliza os jovens, tornando-os presas fáceis de qualquer demagogo de
esquerda que se apresente como revisor do passado e senhor do futuro,
oferecendo a utopia da revolução como uma espécie de errata da própria
humanidade. A nação precisa ser criticamente educada para pensar o passado sem
exageros, reconhecendo os erros e acertos de cada período histórico. É
impossível, por exemplo, que, nos 21 anos que separam o golpe militar de 1964
da eleição de um presidente civil em 1985, o Brasil tenha sido apenas uma terra
arrasada por “anos de chumbo”, como querem fazer crer os Comitês da Vingança
que se arvoram a senhores da verdade. “O regime militar brasileiro não foi uma
ditadura militar de 21 anos” — é o que afirma o historiador Marco Antonio
Villa, doutor em história pela USP e professor da Universidade Federal de São
Carlos, em seu livro “Ditadura à Brasileira”, com o qual eu e os fatos
concordamos integralmente. Até o final de 1968, antes do AI-5, o Brasil vivia
uma efervescência político-cultural mais intensa do que hoje. Depois da
Anistia, em 1979, também.
Mas não se deve combater o mito
guerrilheiro com outro mito — o do Exército salvador da pátria, que, a cada
ameaça comunista, é chamado a salvar a democracia a golpes de Estado. O Brasil
vive novamente um desses momentos cruciais de sua história, em que as
instituições estão sendo transformadas em instrumento da ideologia esquerdista
— o que leva alguns setores da sociedade, ainda que minoritários, a pedir a
volta dos militares. É suicídio. Uma nação adulta dispensa pais de farda. A
República brasileira não pode ser uma quartelada, com interregnos de democracia
em meio a uma história de arbítrios. Mas também não pode ser uma eterna utopia,
em que, à custa de construir um “outro mundo possível”, a esquerda destrua cotidianamente
o mundo real, atiçando pobres contra ricos, negros contra brancos, mulheres
contra homens, minorias contra maiorias, até que, em meio a esse caos de
conflitos forjados, tenhamos o pior dos conflitos: militares contra civis — que
é onde morre a democracia.
OBS : Texto publicado no "JORNAL OPÇÃO".