'Choveu sopa e o Brasil ficou de garfo na mão', diz Renato Baumann do Ipea
Para o Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o conforto dos tempos de superávit na balança comercial, graças a elevados preços das commodities, levou a indústria a perder mais terreno
Sonia Filgueiras sonia.filgueiras@brasileconomico.com.br
"O Brasil participa como fornecedor no início da cadeia produtiva, que não é a parte nobre. Entramos pelos fundos nas cadeias de valor global", diz Baumann do Ipea
Foto: João Viana/Ascom Ipea
Brasília - O economista Renato Baumann, ex-diretor do escritório brasileiro da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que o resgate da indústria brasileira, cuja participação no Produto Interno Bruto e na balança comercial encolhe a cada dia, passa pela busca de competitividade a partir da sua integração aos mercados globais. Carioca, bem-humorado e com doutorado em Oxford, Baumann dispara: “O Brasil entra pelos fundos nas cadeias de valor global”. Ele e sua equipe no Ipea estudam se a integração com os vizinhos poderia contribuir para nossa competitividade. Para Baumann, o conforto dos tempos de superávit na balança comercial, graças a elevados preços das commodities, levou a indústria a perder mais terreno. “Choveu sopa e o Brasil ficou de garfo na mão”, sentencia.
Por que se diz que o Brasil está fora das cadeias de valor global?
A literatura sobre cadeias de valor enfatiza dois pontos de máximo, ideais. Quem ganha com elas? Quem faz a parte de design, pesquisa e desenvolvimento do produto. É o caso clássico do iPhone, frequentemente embora seja made in China — na cadeia de valor, a China fica com 15% e o grosso fica com a Apple. O ideal é ser Apple na vida. O outro ponto de máximo é a situação em que vários países ofertam partes, peças, componentes, matéria-prima e alguém faz a montagem e fica com o filé mignon. Ou seja, o outro desejo é ser o país que sedia as empresas que fazem a montagem. Hoje, participamos basicamente ofertando matéria-prima. Estamos distantes da montagem, porque, para se ter a montagem, é preciso ter uma estrutura de custos que justifique sediá-la. É preciso ter mão de obra qualificada, infraestrutura para escoar a produção etc. O Brasil, sim, participa, mas de uma forma que não é a ideal, basicamente como fornecedor no início da cadeia produtiva, que não é a parte nobre. Costumo dizer que o Brasil entra pelos fundos nas cadeias de valor global.
Mas há exceções...
Sim. Em petróleo, aviação e perfumaria, mas não sai muito disso. Há empresas globais que vêm realizando investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, mas eu custo a crer que elas estejam colocando seu núcleo de inteligência aqui.
É uma herança histórica?
O modelo de industrialização brasileiro parte de um mercado interno de grandes proporções. Atraiu-se capital estrangeiro de uma forma bastante ativa, mas as subsidiárias (de multinacionais) que estão aqui vieram para produzir para o mercado interno ou, no máximo, para vender na América Latina. Isso explica em grande medida o fato de o Brasil ter um parque industrial bastante diversificado e a presença de subsidiárias já há muitas décadas que se destacam entre as economias emergentes. Ao longo do tempo, tivemos alguns incentivos importantes que induziram essas empresas a exportar, mas que hoje a OMC (Organização Mundial do Comércio) não permite. Deixadas ao sabor das forças de mercado, salvo algumas honrosas exceções, essas empresas tenderam ao veio natural, que é o do mercado interno, ainda razoavelmente protegido. Quando muito, exportam para a região. E note-se que o valor das exportações das subsidiárias corresponde à metade do valor das exportações de manufaturas do Brasil. É uma participação grande, mas pouco vai para os países de origem, das matrizes. O percentual de transações intrafirma no Brasil, que no mundo está na faixa dos 30% a 40%, é de 17%, 18%. Essas empresas não atrelam a produção feita aqui à sua produção global.
Como mudar isso?
Um dos grandes desafios é definir que tipo de incentivo pode ser dado a essas empresas para que elas possam vender nos mercados que interessam: aqueles mercados que dão estímulos de competitividade, que forçam as empresas a competir. Quando você vende para um país aqui na América Latina, você se acha bom. Agora, vá vender na 5ª Avenida (Nova York, Estados Unidos), em Genebra (Suíça). Não consegue: não tem programa de just in time , de entrega, assistência técnica, requisitos de proteção ao consumidor. É um mercado bem mais sofisticado.
As exportações de manufaturados foram minguando ao longo do tempo. Como isso aconteceu?
Um dos nossos problemas é que a ênfase nas exportações dada lá atrás, nos anos 80, saiu da agenda da política industrial por vários motivos. No início do Plano Real, a percepção era a de que dar incentivo ao setor exportador era transferência de renda real a um grupo de empresas privilegiadas. Com a crise asiática, foi preciso se repensar e voltar a dar incentivos. A partir de 1997, você mudou a política cambial, que ficou mais proativa e passou a incentivar as exportações, mas dentro de certo limite, e dentro das novas normas impostas pela OMC, com menos grau de liberdade do que antes. Depois de 2002, na gestão Lula, a ênfase passou a ser o mercado interno e, ao mesmo tempo, a economia se beneficiou com o cenário externo altamente favorável, por conta do preço das commodities. Com isso, o setor industrial foi se ressentindo por diversos canais: a entrada de divisas, tanto pelo superávit comercial quanto pelos investimentos (estrangeiros), levou a taxa de câmbio lá para baixo.
Por causa do preço das commodities, que subiu, a apreciação cambial não apareceu na balança comercial.
Exatamente. Em algum momento, tivemos um superávit comercial absurdo, da ordem de US$ 46 bilhões, que na verdade era um problema. Não fazia sentido você se preocupar em estimular as exportações naquele momento. Além disso, a ênfase era no consumo interno. O setor de commodities começou a crescer muito e a política interna foi de elevar o poder de compra — o que teve resultados fantásticos, um quinto da população brasileira cruzou a linha de pobreza. Mas, por outro lado, isso trouxe consumo para o setor de serviços. Os salários do setor de serviços se elevaram e puxaram junto os salários do setor industrial. Só que, em serviços, você não compete com ninguém. Já o setor industrial ficou sem capacidade de oferta para atender à demanda externa, com pressões de custos e com a concorrência de produtos importados. E, para complicar, houve aumento de tarifas sobre bens de produção (bens utilizados na produção de outros bens), o que contribuiu ainda mais para encarecer os custos do processo produtivo.
Qual a dimensão disso?
Eu tenho um paper comparando as tarifas nominais (de importação) sobre bens de produção brasileiros com as de alguns países emergentes selecionados — Brics e outros, como México e Indonésia — de 2000 até 2012. No início da série (2000), o Brasil, embora estivesse na faixa mais alta, não estava sozinho, havia outros países. Todos tiveram uma trajetória de queda e o Brasil, de elevação. Isso no caso dos bens de produção, aí incluídos bens de capital, insumos, peças, equipamentos e matérias-primas. Por que aconteceu isso, eu não sei e não entendo.
O Brasil poderia ter se preparado melhor?
Choveu sopa e o Brasil ficou de garfo na mão. Vivemos uma bonança durante dez ou doze anos, até pelo menos 2008. Ficamos felizes da vida de estar exportando ferro e soja, e enquanto isso o setor industrial se debatendo, sem poder contar com uma ação deliberada de política de apoio. A festa vai acabando e vai ficando claro que teria sido menos míope ter mantido na agenda a preocupação com a inserção internacional do setor manufatureiro.
Qual a saída?
Em primeiro lugar, repensar a estrutura tarifária. Pelo menos, essas tarifas sobre bens de produção. Deveria ser uma pedra de toque de qualquer tentativa de redesenho da política comercial. Mas é algo que tem de ser gradual. Há um custo social envolvido e o Brasil tem um parque industrial instalado, uma estrutura que deve ser preservada. A sociedade dá um valor real à existência de um setor industrial. É importante que seja assim em uma economia como a brasileira, porque nós temos um mercado interno que permite ter uma escala produtiva, uma estrutura industrial diversificada e é o setor industrial o canal de transmissão do progresso técnico. Uma vez que o temos, seria uma loucura, um suicídio desmontar isso. A questão é ajustar o sistema produtivo de tal forma que se possa viabilizar a competitividade da produção, seja com relação aos produtos importados, seja nos mercados de exportação. Estamos perdendo participação nos mercados tradicionais — Estados Unidos, México e Argentina. E estamos perdendo para a Ásia, não é só para a China.
Por que integrar as cadeias de valor é tão importante?
Para sermos um produtor de manufaturas que sobreviva de forma competitiva, é preciso exportar, ser competitivo lá fora. E para fazer isso, o nome do jogo hoje é cadeia de valor. A China consegue altos graus de competitividade porque tem a mão de obra do Vietnã, os insumos de outro vizinho. Nós nunca tivemos nada parecido com isso. E temos mais de 60 anos de discurso de integração na América Latina.
O que mais pode ser feito?
Em segundo, minha obsessão mais recente: investigar a possibilidade de interação produtiva com os países vizinhos. É um projeto que estamos conduzindo aqui no Ipea. Buscamos a possibilidade de encontrar ganhos de custo de produção, a exemplo do Leste Asiático.
Seria, por exemplo, tentar fazer o Mercosul funcionar?
Seja o Mercosul, ou a Aliança do Pacífico, seja que formato for, o nome do jogo é ênfase no econômico e busca de complementariedade produtiva em um jogo de soma positiva. Usar o mercado regional, a disponibilidade de fatores disponíveis no mercado regional, para ganhar competitividade.