O "namastê" da
Índia para a China
Sob a brisa tropical
de Fortaleza, o pragmatismo asiático floresceu
Florência
Costaflorencia.costa@brasileconomico.com.br
Os homens fortes da China e da Índia nunca haviam se encontrado antes.
Do outro lado do mundo, a mídia indiana aguardava com ansiedade o momento em
que Narendra Modi, o primeiro-ministro do país, empossado há apenas um mês e
meio, iria juntar as duas palmas das mãos em um típico gesto cerimonioso na
direção do presidente chinês Xi Jinping e dizer “Namastê” (o cumprimento
habitual na Índia que significa “o sagrado que existe dentro de mim cumprimenta
o sagrado que há dentro de você”).
Duas potências da antiguidade. A participação da Índia e da China já
chegou a representar metade da economia global até o século 17, mas a partir de
então começou a declinar e chegou a 20% em 1900. Fazer negócios está na veia de
ambos antes mesmo dos velhos tempos da Rota da Seda. Nos anos 50, a relação
entre os dois vizinhos era marcada por uma certa áurea romântica de união
pan-asiática em contraposição ao “Ocidente colonizador”.
Uma relação batizada pelos indianos como “Hindi-Chini Bhai-Bhai”
(“Indianos e chineses são irmãos”). Eram os tempos da Guerra Fria, quando
Jawaharlal Nehru, o primeiro primeiro-ministro da Índia acalentava a união com
o imenso vizinho a ponto de ele ter recusado a oferta dos americanos de ocupar
o lugar da China no Conselho de Segurança da ONU para não ofender os “irmãos
chineses”. Uma atitude que os indianos se arrependem amargamente até hoje.
Mas havia um problema mal resolvido desde 1914, quando os britânicos
rabiscaram a famosa linha divisória McMahon sem consultar os chineses, que
interpretaram a atitude como uma ação imperialista. A linha entre a Índia e a
China foi desenhada com margem de erro de 10 quilômetros e nunca foi demarcada
fisicamente. A China acredita que 150 mil quilômetros quadrados de seu território
foram fraudulentamente transferidos para a Índia.A disputa da fronteira de 4
mil quilômetros na belíssima região dos Himalaias provocou uma guerra-relâmpago
em 1962, que arranhou a amizade sino-chinesa até recentemente.
A China ocupou pequenos pedaços do território indiano, inclusive na
conflituosa região da Caxemira. Aí foi a vez da Índia reivindicar seu naco de
terra da China: 43 mil quilômetros quadrados. Volta e meia a escandalosa mídia
indiana promove uma gritaria quando se descobre maços de cigarros vazios e
pacotes usados de macarrão instantâneo de marcas chinesas dentro do território
indiano: um sinal de que soldados chineses passaram por ali.
Nos últimos anos, porém, a economia passou a falar mais alto. A China é
o segundo parceiro comercial da Índia, mas os indianos cobram um equilíbrio
maior, já que o déficit comercial na balança de pagamentos com a China soma US$
34 bilhões.Já se sabia que Modi e Jinping iriam conversar sobre a disputa
territorial. Trata-se de um tema habitual das relações bilaterais.Mas o
bate-papo entre Modi e Jinping superou as expectativas : era para durar apenas
40 minutos, mas demorou 1 hora e 20 minutos. Desde que Modi assumiu o cargo,
conjectura-se na Índia como será sua política externa. Afinal, seu partido, o
Bharatya Janata (Partido do Povo Indiano), extremo na defesa do nacionalismo
hindu, costuma praguejar contra as “atitudes imperiais” da China.
Os indianos saíram da reunião em Fortaleza comemorando. Receberam o
direito de indicar o primeiro presidente do Banco de Desenvolvimento do Brics,
que será sediado em Xangai. Mas a comitiva de Modi gostou também de ouvir a
promessa de Jinping de investir em infraestrutura na Índia e o convite para que
o primeiro-ministro indiano participe do próximo encontro da Apec (Cooperação
Econômica Ásia-Pacífico),em novembro.O grupo inclui EUA, Canadá, México e
Rússia. Representa 40% da população mundial, 55% do PIB do planeta e 44% do
comércio mundial.Alguns indianos deixaram Fortaleza lembrando com amargura que
nem os EUA - do qual a Índia se aproximou nos últimos anos _ havia feito tal
convite.
A Índia sempre sonhou tornar-se um membro do bloco para impulsionar mais
a sua economia. O convite simbolizou o que alguns indianos qualificaram como
“um novo patamar nas relações entre os dois vizinhos”. Foi um sinal
tranquilizador diante dos temores apontados pela mídia indiana durante a
campanha eleitoral de Modi de que ele, com seu temperamento difícil e um dos
mais nacionalista entre os nacionalistas do BJP - iria azedar a relação com a
China por causa das disputas territoriais. baixou o espírito do guru
empresarial, que ele encarnou como ministro-chefe do estado do Gujarat. Modi
retribuiu convidando o colega chinês para visitar Nova Delhi em setembro.
O contexto do colóquio foi a necessidade de os gigantes asiátios - com
2,6 bilhões de habitantes, um terço da população mundial - trabalharem juntos
em plataformas internacionais.As desconfianças mútuas não morreram.
Dificilmente vão morrer. Mas a vontade de fazer negócios e principalmente da
Índia em ver a China investindo em sua carcomida infraestrutura foi muito
maior.O namoro econômico da Chindia parece ter engatilhado e varrido as tensões
para debaixo do tapete. É o que se espera.