segunda-feira, 10 de março de 2014

Informe New York - Meias verdades na Ucrânia
10/03/14 11:15 | Heloísa Villela (heloisa.vilela@brasileconomico.com.br)

Foi o vazamento de uma conversa — a segunda nesta crise ucraniana – que mostrou quem estava, afinal, por trás da violência que matou policiais e manifestantes nas ruas do país
Mas o mundo não ficou sabendo da gravação. Ou pouca gente ficou sabendo... Com exceção do jornal britânico The Guardian, a grande imprensa mundial deu de ombros. Nem uma palavra no New York Times, no Washington Post, nos principais portais de notícias norte-americanos. A conversa complica a estratégia de Washington, calcada na necessidade de afastar o presidente déspota que atira na oposição.
De um lado da linha a chefe da diplomacia da União Europeia, Catherine Ashton. Do outro, Urmas Paet, ministro das relações exteriores da Estônia. Paet estava em Kiev e se deu ao trabalho de investigar o que estava acontecendo. Conversou com uma médica que atendeu os feridos. Olga Bogomolets disse ter experiência com ferimentos a bala e garantiu que mortos e feridos foram atingidos por projéteis disparados pelo mesmo modelo de armamento. Nos onze minutos de conversa, que hoje circulam no Youtube, Paet diz: "existe uma compreensão cada vez maior forte de que Yanukovich (o presidente da Ucrânia naquele momento) não estava por trás dos franco-atiradores. Quem estava era gente que faz parte da nova coalizão". Ashton reage como quem está surpresa e diz que é preciso investigar.
Difícil é explicar como essa notícia "escapou" ao batalhão de jornalistas ocidentais de olhos fixos no que se passa na Ucrânia. Mas não chega a ser uma surpresa. Foi preciso muito tempo para a imprensa norte-americana realmente reavaliar a guerra do Vietnã. Mais recentemente, com a invasão do Iraque, o que se viu foi um ano inteiro de discursos belicistas, de apoio a uma ação militar sem propósito (bem, a garantia de acesso ao petróleo justifica tudo), baseada em uma mentira contada ao mundo inteiro. A famosa fabricação de armas de destruição em massa. Um ano depois da invasão, começaram as revisões e pedidos oficiais de desculpa.
O bombardeio da Líbia ainda está muito recente. Quem sabe em outros 5 ou 10 anos haverá uma releitura do processo. Por enquanto a imprensa, por aqui, está mais preocupada em demonizar Vladimir Putin. E não foi exatamente assim com Saddam Hussein?
Chamou a atenção a capa de um portal de notícias razoavelmente liberal, o Huffington Post, que recortou a foto de Putin deixando apenas os olhos do Presidente Russo a mostra sob o título: "Putin enlouqueceu". Provável candidata a presidente, a ex-secretária de Estado e ex-senadora Hillary Clinton não economizou. Comparou Putin a Hitler. A realidade é irônica. O golpe contra o presidente Yanukovich (um líder muito criticado até mesmo por Moscou), apoiado e insuflado por Washington e pela União Europeia, alçou ao poder representantes do movimento fascista. Esta é a primeira vez que eles chegam lá desde a Segunda Guerra Mundial. Mas estes são os aliados do momento por isso, nada se ouve falar a respeito da composição política da junta golpista.
Putin é o centro das atenções. O famoso assassinato de caráter está a pleno vapor contra o russo. Foi o que se viu o tempo todo durante as olimpíadas de inverno em Socchi. A discussão a respeito dos direitos dos homossexuais na Rússia disputou espaço com as competições na neve e no gelo. Uma ótima estratégia para garantir o apoio da chamada imprensa liberal para o time anti-Rússia. "Putin desprezou o alerta de Obama", diz a manchete quase indignada do Washington Post.
Em artigo publicado no mesmo periódico, Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional no governo Jimmy Carter e eterno guru ideológico-estrategista dos presidentes democratas, referiu-se a Putin como brutamontes, mafioso, gângster, Mussolini e até mesmo Hitler. O mesmo Brzesinki já falava, em artigo publicado em 2008, na necessidade de garantir acesso ao petróleo da região da Crimeia. E também defendia a estratégia clássica de dividir para governar destacando a importância de promover o desmembramento de regiões ligadas à Rússia.
O que se vê é a implementação de um projeto que antecede Obama, Bushs, Clinton, Reagan... e vai bater em Harry Truman. A decisão clara de abandonar na política externa, em nome da contenção do comunismo, todo e qualquer valor moral, ético e humano defendido dentro das fronteiras dos Estados Unidos. Como em um jogo de tabuleiro como o antigo WAR (quem virou a noite em volta dele sabe do que estou falando), Washington tem uma única intenção. Ocupar todo o tabuleiro. Reinar absoluto em todas as regiões do planeta. E dessa forma garantir acesso a todas as riquezas e mercados que julga necessitar.
Andrew Levine, analista sênior do Instituto de Estudos Políticos e autor de vários livros, entre eles "The American Ideology", acaba de publicar um artigo no qual pergunta: "Putin deve nos salvar novamente?". Ele diz que as Organizações Não-Governamentais norte-americanas tem tentado arduamente, sem sucesso, promover discórdias na China. Mas o estado forte e controlador lá não dá brechas. Já na Rússia, diz o estudioso, a estratégia dá mais certo porque o grau de repressão é infinitamente menor. Depois de dividir a Iugoslávia, os Estados Unidos agora tentam transformar Putin em um novo Slobodan Milosevic. Um demônio!
"Nós sabemos que o NED (National Endowment for Democracy, organização criada no governo Ronald Reagan para "promover a democracia no mundo") estava em toda parte na Ucrânia e em outras ex-repúblicas soviéticas. E até opera na Rússia. O que ainda não sabemos, com certeza, é o papel que o NED e outros grupos tiveram na instigação dos acontecimentos que começaram nas ruas de Kiev. Sabemos que serviram de catalisadores, mas não sabemos ainda a extensão de seu envolvimento".
Irônica é a conclusão do estudioso. Ele lembra que foi Putin quem, muito recentemente, salvou Obama de um desastre. Quando o norte-americano se colocou em uma sinuca de bico ao traçar uma linha imaginária que Bashar Al-Assad não poderia cruzar, Putin correu para evitar uma guerra. "Por sorte", diz Andrew Levine, "a política externa russa está em mãos bem mais sábias e capazes do que as nossas. Nossas maiores esperanças estão com ele novamente. Se o que está acontecendo na Crimeia permanecer na Crimeia, o crédito será dos russos".