terça-feira, 18 de março de 2014

Relatório D.C. - A marcha da insensatez
18/03/14 11:30 | Rogerio Studart (rogerio.studart@brasileconomico.com.br)

O que mais preocupa na crise ucraniana, além das perdas humanas, é a aparente irracionalidade das respostas de alguns dos principais atores — a Rússia, a União Europeia e os Estados Unidos.
Em um momento em que a economia mundial passa por uma ainda frágil recuperação, o aprofundamento da crise política pode ter consequências que vão muito além da maior tensão das relações internacionais. Vejamos.
Primeiramente, é importante recapitular como a crise chegou aonde está. A Ucrânia é um subproduto do esfacelamento da União Soviética, a quem pertencia. Como uma grande parte das chamadas "economias pós-soviéticas", o país se submeteu a uma transição para uma economia de mercado que resultou em uma década de retração da atividade econômica, tendo tido o seu pior momento em meados dos anos 90 - incluindo a inacreditável retração econômica de 22,5% em 1994. Passou por um traumático período de hiperinflação, que corroeu ainda mais o poder de compra, especialmente dos mais pobres. Esse longo processo de transição resultou na redução da renda per capita de algo superior a US$ 8 mil no momento da sua independência para algo inferior a US$ 3,9 mil em 2012.
Somente a partir de 2000, a nova economia de mercado começou a ter taxas de crescimento positivas elevadas (variando entre 2,5% em 2002 e 12,5% em 2004). A Ucrânia se beneficiou de uma conjuntura externa favorável - com o crescimento da Rússia e outras economias pós-soviéticas, da União Europeia, Turquia e China - e ampliou rapidamente suas exportações de metais ferrosos e não ferrosos, produtos petrolíferos, químicos, maquinaria, equipamentos de transporte e produtos alimentícios. Mas suas importações de energia (especialmente de gás natural da Rússia), maquinaria e químicos aumentaram mais que proporcionalmente - com déficits crescentes compensados parcialmente pelo aumento de remessas e crescimento da dívida externa. O período de recuperação da Ucrânia foi subitamente interrompido com a crise de 2008 e, em 2009, seu PIB encolheu 15%. A partir de então, a situação financeira passou por um processo de deterioração - crescentemente dependente de apoio financeiro internacional.
Se levássemos em conta somente o sofrimento econômico das últimas décadas, o povo ucraniano já teria razões mais do que suficientes para ter ressentimentos. Alguns, especialmente os 77% etnicamente ucranianos, sem dúvida culpam a proximidade da Rússia pelas suas auguras, e devem desejar poder aproximar-se mais da União Europeia. Outros, especialmente os 17% de etnia russa, devem ressentir-se de qualquer tentativa de ampliar a separação da Rússia. Seja o que for, trata-se de um país em busca de quem culpar por quase duas décadas de volatilidade e decadência econômicas.
A irracionalidade não para somente no ressentimento (apropriado) dos ucranianos. A atual situação na Ucrânia também reflete um aumento da disputa entre a Rússia e a União Europeia por áreas de influência. Ao longo deste longo período de transição e mais recentemente a partir da crise de 2009, a União Europeia tem se demonstrado disposta a apoiar a Ucrânia, porém com condicionalidades crescentes. A Rússia, por sua vez, basicamente condiciona sua ajuda a manter sua posição de aliado, particularmente militar - e para tal apoia governos favoráveis à própria Rússia, e de discutível reputação. De fato, a deterioração econômica, com perda de renda real e desemprego, se somou à percepção popular de uma crescente corrupção das elites. Foi esta percepção que contribui significativamente em elevar o descontentamento popular a uma crescente ebulição política - especialmente entre os jovens - que culminou nos protestos populares em Kiev, justificados pela decisão do governo local em não assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia. Os protestos levaram à renúncia em janeiro do Primeiro Ministro Mykola Arazov. E apesar do governo ter feito um acordo com os líderes dos protestos, um grupo radical invadiu o parlamento, o que resultou na fuga do Presidente Yanukovich e sua subsequente deposição por parte do novo governo - que também propõe eleições para 25 de maio.
A república autônoma da Crimeia foi cedida pelo líder do Partido Comunista Nikita Khrushchek - e, conta-se, que num momento de embriaguez. Com mais da metade da população de etnia soviética, a Crimeia não só se identifica mais com a Rússia, como constitui uma posição estratégica para a frota russa no Mar Negro. Perder tal aliado estratégico gera algum medo de que poderia gerar um avanço da OTAN nessa região. O episódio que culmina no referendo de ontem, que aprova a sua secessão da Ucrânia e anexação pela Rússia, somente reflete o enorme desconforto da Rússia, especialmente do seu presidente, com a possibilidade de perder um importante aliado, econômico e especialmente militar.
A crise da Ucrânia tem, portanto raízes históricas, marcadas por profundos ressentimentos, e demonstra que as feridas dos conflitos europeus e da Guerra Fria ainda estão abertas. Talvez por isso possa vir acompanhada por reações aparentemente irracionais por parte dos envolvidos - o que preocupa. Por exemplo, a União Europeia (UE) é um importante parceiro comercial da Rússia, especialmente de petróleo e gás. Mesmo que possua grandes estoques de petróleo (talvez como reação à crise de 2009, quando a Rússia cortou o fornecimento via Ucrânia), a UE sofreria uma retração importante das suas exportações, caso a Rússia retaliasse. Tendo em vista a fragilidade da economia europeia, uma escalada desse conflito poderia retardar ainda mais sua recuperação. Já a economia russa tem vivido uma desaceleração pelos últimos anos, com retração do consumo e do investimento, como consequência da redução da demanda de energia. O crescimento econômico caiu de 3,4% em 2012 para 1,3% em 2013. Uma decisão por parte da UE de reduzir a demanda como sanção à anexação da Crimeia poderia deprimir mais ainda a economia russa.
Os Estados Unidos, por sua vez, têm muito a perder caso Rússia e União Europeia iniciem um processo de afastamento gerado por sanções e retaliações. Afinal, o total das importações e exportações de bens e serviços dos Estados Unidos para a União Europeia gira em torno de US$ 800 bilhões, e este não é o momento para a economia norte-americana sofrer golpes de demanda externa.
Se prevalecerem os interesses econômicos, é possível que esta crise não tenha consequências maiores do que as já observadas. Mas tendo em vista a carga de emoções e ressentimentos em torno desde cenário, não se pode eliminar a possibilidade de que prevaleça a irracionalidade - e a irresponsabilidade coletiva.