segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Informe New York - Cubanos e o racismo no Brasil
02/09/13 12:05 | Heloísa Villela (heloisa.vilela@brasileconomico.com.br)
Que tristeza... Vasculhando a internet em busca de notícias, me deparei com uma manchete a respeito do Brasil na capa de um jornal britânico. O gatilho que detonou a matéria foi o desembarque de médicos cubanos que foram recebidos, no Ceará, aos gritos de “escravos”
Fazia tempo que não via referências negativas ao Brasil na imprensa internacional. As denúncias contra Ricardo Teixeira e o julgamento do chamado mensalão foram tratados pela imprensa, por aqui, como são tratadas outras denúncias mundiais. Mas quando desembarquei em Nova York lá pelo no fim de 1988, era comum, e não me espantava muito, ler matérias críticas, que destacavam os nossos "podres", digamos.
Foram muitos anos assim por conta da violência ou da miséria, do exotismo ou de programas econômicos sucessivos que congelaram preços, usurparam a poupança... Houve a longa década de negociação da dívida externa, a moratória que transformou o país em vilão por um bom tempo. Enfim, não era com bons olhos que a turma aqui do andar de cima olhava para o Sul Maravilha.
Isso tudo mudou na última década. Com o crescimento econômico e os programas de distribuição de renda que mudaram o perfil socioeconômico do país, o Brasil ganhou outro status. Diversificou as exportações, ganhou novos parceiros e peso no cenário internacional. Tornou-se o queridinho da imprensa mundial. Fiquei mal acostumada.
Por isso o susto na última quarta-feira. Foi dia de muita conversa, por aqui, a respeito do racismo. As sequelas da segregação racial. Os americanos passaram o dia se perguntando se, afinal, o país ainda enfrenta o racismo, em que cantos da sociedade ele se esconde, quais as políticas adotadas para combatê-lo foram bem sucedidas e porque ainda existe tanto que fazer.
Natural esse debate. Afinal, era dia de comemorar os 50 anos da histórica marcha a Washington por Empregos e Liberdade. Dia em que o Reverendo Martin Luther King fez o tão falado discurso "I have a dream" que pude rever, na íntegra, agora. Emocionante! Pois foi justamente neste dia, enquanto pulava de uma análise histórica para outra, que me deparei com a capa do jornal britânico falando sobre o racismo no Brasil. O gatilho que detonou a matéria foi o desembarque de médicos cubanos que foram recebidos, no Ceará, aos gritos de "escravos".
Parei incrédula. Talvez ignorância minha me surpreender diante de uma manifestação tão raivosa e claramente racista. Queria gritar ao mundo: é uma meia dúzia! Eles não representam os médicos brasileiros e muito menos a população do meu país! Mas estavam lá mostrando uma série de preconceitos e sentimentos mesquinhos ao mesmo tempo. Esses mesmos médicos que não aceitam a ajuda dos colegas cubanos para atender pacientes em áreas que a medicina brasileira nunca visitou gritam no aeroporto e nas páginas da internet. Mas não vi nenhum deles, até agora, propor uma saída para quem precisa de assistência médica e não tem.
Infelizmente, já ouvi até o seguinte: "isso é comum no mundo inteiro. As cidades menores não têm recursos. Um centro mais aparelhado serve a toda uma região. É assim mesmo". Muito normal para quem mora no Rio, em São Paulo, em Belo Horizonte e encontra médicos quando necessita. Falar da necessidade alheia com estatísticas não resolve a situação de quem está no interior, em uma área desassistida. Me soa desumano. E preconceituoso. Por acaso é preciso se preocupar tanto assim com a Senzala? Do alto de seus jalecos brancos, alguns médicos (e ressalto, são alguns. Tenho certeza que não são a maioria) precisam reler o Juramento de Hipócrates, que fizeram lá atrás, na formatura, para pensar qual foi, afinal, a profissão que abraçaram.
Mas voltemos aos cubanos e aos Estados Unidos, esse país paradoxal. Pois é o único que tem em Cuba, até hoje, um grande inimigo digno da lista de apenas cinco estados terroristas do planeta. Pois é nesse país aqui que despreza, mina e já fez de tudo para acabar com a revolução cubana que se encontram, também, os grandes estudiosos do regime e dos sucessos de Havana. A socióloga Julie Feinsilver é autora do livro "Healing the Masses" (Curando as Massas), um estudo aprofundado a respeito do sistema de saúde cubano e das brigadas internacionais que percorrem o mundo para tratar das populações carentes de outros países. O livro e os artigos de Julie Feinsilver são referência no meio acadêmico e até mesmo em algumas políticas da Casa Branca, hoje em dia.
Mas não foi sempre assim. Quando terminou o que corresponderia aqui ao Segundo Grau, Julie saiu pelo mundo de mochila nas costas. Pegou carona pela América do Sul, desceu os rios da Amazônia, circulou em regiões bastante remotas antes de encerrar a viagem na Europa onde, por acaso, pegou um livro, em Praga, chamado "A História me Absolverá", de Fidel Castro. Longe de simpatizante ou algo do gênero, a agora Dra. Feinsilver me disse que, naquela época, ela não tinha muita consciência política.
Mas depois de ver tantas desigualdades nos países que visitou e tanta disparidade econômica e social também entre os países, ela viu algo interessante no livro de Fidel.
"Depois de tudo que eu vi, achei que a revolução cubana era algo que merecia ser estudado". Quando voltou aos Estados Unidos e entrou na faculdade, foi o que ela fez. E focou na política de saúde. Julie Feinsilver acompanhou de perto do trabalho dos médicos cubanos dentro e fora de Cuba. Ela me disse que em muitos países, os médicos locais reagem à chegada dos de fora. "Mas no Brasil foi mais forte", afirmou. E arrisca uma teoria. Talvez as organizações de classe sejam mais fortes, ligadas a partidos poderosos, e o programa tenha surgido na hora errada. Em meio aos protestos que sacudiram o país.
A proposta de solução para o problema das comunidades mais remotas que precisam de médicos acabou se misturando às reclamações sobre gastos com os preparativos para a Copa. Mas não é só isso. Ela aponta também o corporativismo da classe médica como motivo da reação. Porém, me tranquilizou:
- Os médicos cubanos ajudam tremendamente nos locais para onde vão. Desde 1961, mais de 135 mil profissionais de saúde cubanos trabalharam em 107 países e nas áreas onde trabalharam, reduziram a taxa de mortalidade infantil pela metade. Eles olham para o paciente em toda a sua dimensão. Fazem pesquisa epidemiológica para saber quais são os riscos à saúde. E tratam os pacientes de igual para igual. Com isso, acabam provocando mudanças na maneira de pensar a relação médico-paciente e de praticar a medicina.
Julie Feinsilver tem certeza que é tudo uma questão de tempo. De pouco tempo, para que os médicos cubanos, no Brasil, sejam tratados, nas comunidades onde vão atuar, como velhos amigos.