quarta-feira, 5 de novembro de 2014

 As duas faces de Getúlio

Talvez falte à presidente Dilma Rousseff capacidade de sedução. Se é para se inspirar em Vargas, que seja em seu lado afável

Ponto Final

Octávio Costa

 

Que Dilma gosta muito de ler não é novidade. E a biografia de Vargas por Lira Neto já se tornou obra de referência, ganhando o merecido destaque graças ao apuro do autor. Mas daí a afirmar que a presidente usará a experiência do líder trabalhista vai grande distância. Antes de mais nada, vale lembrar que existem dois Getúlios.
O primeiro comandou uma ditadura cruenta nos anos 30. Com a polícia chefiada por Filinto Müller, os inimigos do regime eram tratados a ferro e fogo. O americano Harry Berger, preso em 1935 após a tentativa de golpe comunista liderada por Luiz Carlos Prestes, levou choques elétricos e teve as unhas arrancadas a alicate. Preso debaixo de uma escada, enlouqueceu nas dependências do Dops, na Rua da Relação. Prestes ficou um ano incomunicável numa solitária. Foi salvo pelo advogado católico Sobral Pinto, que pediu que a ditadura respeitasse ao menos o Código de Defesa dos Animais.

Este Getúlio, que chegou a simpatizar com Hitler e com a ocupação da Europa pelo III Reich, ficou no passado. Graças aos herdeiros do trabalhismo, como João Goulart e Leonel Brizola, fala-se muito mais sobre o avô bonachão que foi procurado em sua fazenda de São Borja em 1950 para voltar ao poder nos braços do povo. 
Hoje, reverencia-se apenas o Vargas nacionalista que criou a Petrobras e o BNDES, ampliou os direitos dos trabalhadores e reforçou o poder dos sindicatos. Também é dada ênfase especial ao homem que enfrentou as elites que se abrigavam sob a legenda da conservadora União Democrática Nacional (UDN). Apresenta-se Getúlio como o pai dos pobres que foi levado ao suicídio porque enfrentou os inimigos das causas populares. Enfim, o político carismático que deixou a vida para entrar para a história.
São, portanto, dois personagens antagônicos. O que é reconhecido pelo próprio Lira Neto, autor da biografia elogiada por Dilma. Em entrevista, ele resumiu o perfil de Getúlio: “Era um homem ambíguo, contraditório, permeado de ambivalências. Tinha a capacidade de seduzir e, por vezes, cooptar adversários. Era um hábil negociador, um político astuto, que sabia usar da afabilidade para desconcertar e desarmar o interlocutor mais ríspido. Ao mesmo tempo, quando exerceu o poder na condição de ditador, agiu com mão de ferro para silenciar a oposição e as vozes dissonantes”.
Dilma Rousseff, ao que se sabe, não tem nada de ambígua e é defensora intransigente das liberdades democráticas. Talvez lhe falte capacidade de sedução. Se é para se inspirar na figura de Getúlio, que seja em seu lado afável. Para desarmar os adversários.