quinta-feira, 3 de setembro de 2015


PREVENDO INCERTEZAS

A PRODUÇÃO DE ESTIMATIVAS PELA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA[1]

 

Marcio Bonifacio Moraes- CMG

 

“É perdoável ser derrotado, mas nunca ser surpreendido.”

Frederico II Rei da Prússia

 

1-   INTRODUÇÃO

       

        Imaginemos que estamos vivendo na Europa em 1900. A Inglaterra era a “capital do mundo”, e governava a maior parte do hemisfério oriental. Era um império global conhecido como: O Império onde o sol nunca se punha. A Europa vivia tempos de paz e prosperidade, controlando todos os negócios.

        Agora estamos em 1920. A Europa está em frangalhos, saindo de uma guerra que custou milhões de vidas. Os impérios austro-húngaro, russo, otomano e alemão estavam dissolvidos. O comunismo havia dominado a Rússia. Os Estados Unidos e o Japão haviam emergido no cenário internacional, como grandes potências.

        Cerca de vinte anos após, em 1940, A Alemanha havia ressurgido e dominava grande parte do continente europeu. Uma nova guerra mundial eclodiu e, ao seu término, os Estado Unidos da América e a União Soviética emergiram como protagonistas de um novo confronto. Era o início da chamada “Guerra Fria”. A China também havia se tornado comunista e mais uma guerra começou: a da Coréia.  Em 1960, o comunismo e o mundo ocidental se defrontam buscando uma hegemonia ideológica. Os poderosos impérios do início do século haviam desaparecido.

        Em 1980, os Estado Unidos saiam de uma humilhante derrota, após uma desgastante guerra de cerca de sete anos, não contra a sua maior rival, a União Soviética, mas com um pequeno país asiático: o Vietnã do Norte.

        No ano de 2000 a União Soviética havia se desintegrado. Novos estados se formaram na Europa, promovendo uma nova reconfiguração geopolítica na região, muito semelhante a que havia no início do século XX. A China permaneceu comunista, mas passou a se utilizar de práticas capitalistas. A União Europeia e a OTAN estenderam as suas fronteiras para a Europa Oriental encurralando uma atemorizada Rússia que buscava, a todo custo, recuperar sua antiga área de influência e a sua “fronteira estratégica”. Entretanto, entraram em cena novos atores, os países do Oriente Médio e da Ásia difundindo o islamismo na sua forma mais radical.

        Assim, nessa breve retrospectiva mostramos que em um espaço temporal de cem anos a conjuntura mundial sofreu diversas transformações.          Cabe agora a seguinte pergunta: teria sido possível prever todos esses acontecimentos? A resposta mais plausível seria não. Entretanto, se analisarmos mais detidamente todos esses fatos a luz de sólidos conhecimentos de política, de relações internacionais, de história, de economia, de geopolítica e com o auxílio de técnicas prospectivas poderíamos, de certa forma, prever ou estimar alguns deles. Essa é uma das tarefas mais nobres da Atividade de Inteligência.

 

2-   A ATIVIVIDADE DE INTELIGÊNCIA COMO INSTRUMENTO DE ASSESSORIA DO ESTADO

 

“O Serviço de Inteligência é o escudo invisível da pátria”.

Professor Raimundo Teixeira de Araújo

Historiador

 

         Um princípio básico de alta gerência do Estado recomenda que todo ato decisório necessita estar lastreado em conhecimentos[2] oportunos e, quanto possível, amplos e seguros. Assim, a Atividade de Inteligência desempenha importante papel na assessoria do processo decisório. Entretanto, não é só com base no assessoramento de Inteligência que as autoridades governamentais planejam, executam e acompanham suas políticas e estratégias. Outros organismos também realizam estudos, elaboram relatórios todos convergindo para o mesmo propósito. Entretanto, a Atividade de Inteligência age de forma especial, pois é a única que atua em um cenário peculiar que é o denominado Universo Antagônico, cenário caracterizado, essencialmente, pela existência, real ou potencial de ameaças que, deliberadamente, se contraponham ao atingimento dos objetivos maiores de uma nação. Em outras palavras, trabalha em uma área sensível e de risco onde os dados procurados encontram-se protegidos ou são negados.

         Uma máxima nos diz que “Conhecimento é Poder” [3]. Sem dúvida, um Estado bem informado é um Estado poderoso e capaz de prover por si só a sua própria segurança e determinar com precisão os caminhos para alcançar seus objetivos maiores.        Assim, a assessoria de Inteligência produz vários documentos, dentre os quais a Estimativa.

 


 

3-   A PRODUÇÃO DE ESTIMATIVAS PELA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA

 

“Se queres prever o futuro, estude o passado.”

Confúcio

     A Estimativa, doutrinariamente, pode ser definida como o conhecimento resultante de raciocínios elaborados pelo profissional de Inteligência e que expressa o seu estado de opinião em relação à verdade sobre a evolução futura de um fato ou de uma situação. Sua elaboração é uma das tarefas mais complexas e instigantes da Atividade de Inteligência, exigindo um trabalho coordenado entre os vários órgãos envolvidos. A produção de Estimativas é, sem dúvida, um dos trabalhos mais importantes da Atividade, pois é de natureza proativa – antecipa-se aos fatos.

     A produção de Estimativas é uma ferramenta de grande utilidade para o usuário da Atividade de Inteligência, pois somente por seu intermédio é que pode ser evitada a Surpresa Estratégica. Ela pode ser definida como: a possibilidade de se conseguir resultados decisivos em ações lançadas contra o inimigo, em curto espaço de tempo ou sem aviso prévio. Ela surgiu, em grande parte, devido aos avanços tecnológicos. A Surpresa Estratégica pode ser obtida quanto à oportunidade (ou o momento oportuno), quanto ao método e quanto ao local do evento. Entretanto, a Surpresa Estratégica não ocorre apenas nas guerras e batalhas. Ela pode existir nos campos político, diplomático, econômico e tecnológico.

     Dentre os casos clássicos de Surpresa Estratégica no campo militar poderiam ser citados os seguintes:

- a invasão da URSS pela Alemanha, ocorrido em 22 de junho de 1941 – Operação Barbarossa”;

- o ataque aeronaval a Pearl Harbor, desencadeado em 07 de dezembro de 1941 pelos japoneses;

- a Batalha de Midway ocorrida no período de 4 a 6 de junho de 1942, entre norte-americanos e japoneses;

- a contraofensiva alemã nas Ardenas, também conhecida como a Batalha do Bulge, ocorrida no período 16 de dezembro de 1944 a 25 de janeiro de 1945.

- o ataque da Coréia do Norte à Coréia do Sul ocorrido em 25 de junho de 1950.

- a Guerra dos “Seis Dias” travada entre Israel, o Egito, a Síria, a Jordânia e o Iraque no período de 5 a 10 de junho de 1967; e

- a Guerra do Yom Kippur travada no período de 06 a 26 de outubro de 1973 entre Israel, o Egito, a Síria e o Iraque sobre a qual iremos nos referir posteriormente, em um Estudo de Caso.

     Historicamente, a produção de Estimativas teve o seu início nos EUA logo após a invasão da Coréia do Sul por tropas da Coréia do Norte, como já mencionado anteriormente, como um caso clássico de Surpresa Estratégica. Nessa ocasião, foi sentida a necessidade de se criar um organismo ligado à recém-formada Comunidade de Inteligência norte-americana[4] para conduzir estudos prospectivos visando à evolução futura de acontecimentos. Assim, surgiu o Escritório Nacional para Produção de Estimativas[5] que passou a produzir as Estimativas Nacionais de Inteligência[6].

     Essa tarefa é atualmente coordenada pelo Conselho Nacional de Inteligência[7] organismo pertencente à cúpula da Comunidade de Inteligência dos EUA e que se subordina diretamente ao Diretor Nacional de Inteligência (DNI).

     No Reino Unido o organismo responsável pela produção das Estimativas é o Comitê Conjunto de Inteligência[8], organismo centralizador da Atividade de Inteligência e ligado ao Cabinet Office [9] e que tem como membros: Secret Intelligence Service (MI 6) voltado para o Campo Externo, o Security Service (MI 5) voltado para o Campo Interno, a Contrainteligência e o contraterrorismo, o Government Communications Headquarters (GCHQ) que trata da Inteligência de Sinais e o Serviço de Inteligência de Defesa que congrega os serviços de Inteligência das três forças singulares.

     Em Israel, comunidade de Inteligência é formada pelo MOSSAD[10], o SHIN BET[11] e o AMAN[12]. A esse último, cabe apenas a coordenação da produção das Estimativas nacionais. Sobre o AMAN vamos,  oportunamente, analisar o seu trabalho em um estudo de caso.

4 – COMO SÃO PRODUZIDAS AS ESTIMATIVAS

“O método é necessário para a procura da verdade.”

René Descartes

    

     Como já mencionado, a metodologia para a produção de Estimativas é um trabalho complexo e normalmente realizado por uma equipe de analistas, muitas vezes de diferentes órgãos de Inteligência, assessorados por especialistas ou peritos de áreas específicas, dependendo do tipo de assunto em questão. O estudo mais detalhado da metodologia aplicada à elaboração de Estimativas é um tema iminentemente técnico e, assim, foge ao escopo do presente trabalho. Entretanto, poderiamos dizer, de forma simplificada, que a produção de uma Estimativa se estrutura basicamente em três tipos de fatores:

a)   PRÉ CONDIÇÕES  

Normalmente, são conhecimentos ou fatores de longo prazo. São estáticos ou se modificam vagarosamente. Como exemplo, poderíamos citar: a composição da estrutura de defesa de um país, o efetivo de suas forças armadas, o posicionamento de uma instalação militar, a infraestrura do país,  indicadores demográficos e sociais, fronteiras e outros.

b)    ELEMENTOS CATALISADORES

São conhecimentos ou fatores dinâmicos, cuja validade é restrita a médio ou a curto prazo (período de alguns meses até cinco anos). Normalmente, são difíceis de serem detetados, identificados e obtidos. Muitas vezes torna-se necessária uma operação de Inteligência. Exemplificando: o grau de aprestamento de uma força armada, a aquisição de novos armamentos ou obtenção de novas tecnologias, indicadores econômicos, a criação de um grupo político, as coalisões, e outros.

 

 

 

c) “GATILHO”

Este é o terceiro e último fator. Talvez o mais complexo, pois é difícil de se prever, mas é necessário para ativar uma situação. Um único evento pode ser o causador. Como exemplo, poderíamos mencionar: a morte de um líder político,  eleições, o cancelamento de acordos ou tratados e outros.

         Essa é certamente a etapa mais complexa de todo o processo. Os profissionais de Inteligência envolvidos na produção de Estimativas, de posse de todos os conhecimentos obtidos nas etapas anteriores vão interpretá-los e buscar um significado final para o trabalho. Muitas vezes ele não aparece de forma clara, e necessita ser deduzido. É o que os alemães chamam de “Geistiger Krieg” ou a ” Guerra dos Cérebros”  na qual o intelecto comanda as ações.

    Os três casos mais recentes que poderiam bem exemplificar esse fator foram: A denominada “Primavera Arábe” ocorrida em 2011 e cujo “gatilho” foi a morte de um estudante tunisiano. A guerra civil na Ucrânia em 2013/2014 com a anexação da Criméia pela Rússia, cujo “gatilho” foi o cancelamento de um acordo bilateral entre a Ucrânia e a União Européia. O mais recente foi a decaptação de cidadãos ocidentais pelo grupo terrorista ISIS[13] que desencadeou os ataques aéreos das forças de coalizão liderados pelos EUA contra o autodenominado Estado Islâmico.

           

5 – UM ESTUDO DE CASO

 

“Para mim, o período de 01 a 06 de outubro de 1973, no Comando Sul, foi uma semana normal.”

General David Elazar

Chefe do Estado-Maior do Exército de Israel

Em depoimento na Comissão de Inquérito Agranat

 

     A História Militar nos oferece um dos mais clássicos exemplos de falha na produção de Estimativas e de Surpresa Estratégica que foi o da Guerra do Yom Kippur[14]. Ela ocorreu em outubro de 1973 e teve como protagonistas: Israel, o Egito, a Síria e o Iraque. Os principais líderes israelenses por ocasião do confllito eram:

- Primeira-Ministra: Golda Meir;

- Ministro da Defesa: Moshe Dayan;

- Chefe-do-Estado-Maior das Forças de Defesa: General David Elazar;

- Diretor do Serviço de Inteligência Militar (AMAN): Eliyahu Zeira; e

- Diretor Chefe do MOSSAD: Zvi Zamir. 

     Após o término da “Guerra dos Seis Dias” ocorrida em 1967, Israel teve o seu território aumentado consideravelmente e, pela primeira vez na sua história, passou a contar com uma fronteira estratégica ou de segurança. Todos os seus centros populacionais estavam, agora, separados das tropas egípcias por uma barreira desértica de 240 km de largura (o Deserto do Sinai) e o Canal de Suez, formando uma barreira natural. Se Israel fosse envolvido em outro conflito, as cidades afetadas seriam egípcias[15] e não israelenses. Ademais, próximo à região do Canal de Suez foi construída um complexo de fortificações que ficou sendo conhecido como Linha Bar-Lev[16].

     Uma situação igualmente favorável fora alcançada por Israel ao longo da frente com a Jordânia. Jerusalém encontrava-se unificada e o exército jordaniano teria que montar uma operação de contra-ataque de maior envergadura através do Rio Jordão e ao longo dos 65 km do Deserto da Judéia. Na frente síria as forças israelenses dispunham, também, de certo grau de profundidade, além das colinas de Golan.

     A figura abaixo permite melhor visualizar a situação após a guerra.

 

       FIGURA 1 - SITUAÇÃO DE ISRAEL APÓS A GUERRA DOS SEIS DIAS - 1967

     Assim sendo, os israelenses podiam optar pelo lançamento de uma ofensiva antecipada se uma guerra parecesse iminente. Caso sofresse um ataque teria espaço para poder desdobrar as suas forças, e contra-atacar.

     Dentro desse contexto, as Estimativas elaboradas pelo seu Serviço de Inteligência Militar de Israel, o AMAN, fez com que o Estado-Maior israelense desenvolvesse uma Concepção Estratégica[17] cujas premissas repousavam nas seguintes presunções:

- O Egito não desencadearia uma guerra sem que fosse capaz de lançar ataques em profundidade contra o território de Israel, particularmente contra os seus aeroportos militares, a fim de neutralizar a força aérea israelense;

- A Síria não deflagraria uma guerra em grande escala contra o Estado judeu, a menos que o Egito também participasse da luta; e

- O Egito e a Síria só teriam condições de se engajar em uma nova guerra, a partir de 1976, pois encontravam-se debilitados em material e pessoal.

     Essa concepção pode ter sido correta no tempo em que foi formulada, entretanto a sua parte principal e decisiva não foi objeto de reavaliações à luz das transformações políticas, militares e tecnológicas que iriam se verificar posteriormente na região.

     Alguns historiadores argumentam que, de fato, os preparativos para a Guerra do Yom Kippur teriam começado logo após o fim do conflito de 1967, com a reorganização do Exército Egípcio, auxiliado por assessores militares soviéticos. Uma atenção especial foi dada a qualidade do potencial humano e à sua motivação. Em termos materiais a URSS também forneceu carros de combate, baterias de foguetes e aviões.

     O fato é que já em 1968, os egípcios haviam iniciado as operações de fustigamento que, mais tarde, culminariam com uma Guerra de Atrito (1968-1970). Essas operações já faziam parte de uma estratégia de dissimulação[18], que seria praticada pelos egípcios e sírios no período que antecedeu a guerra do Yom Kippur. Ela produziu ótimos resultados e iria contribuir para confundir as futuras análises da Inteligência Israelense.

     A morte do presidente Nasser em 28 de setembro de 1970 deixou o Egito sem uma liderança efetiva e carismática que conseguira manter unido o mundo árabe na luta contra Israel. Em seu lugar assumiu Anwar El Sadat, que embora tenha realizado uma grande modificação na estrutura política do país, que ainda era dominada por seguidores de Nasser. Embora Sadat não tivesse o carisma e o prestígio do antigo presidente, prosseguiu na intenção de recuperar o território perdido para Israel em 1967. Entretanto, em 1971, declarou, pela primeira vez, em uma entrevista que o Egito estava preparado para reconhecer o Estado de Israel e conviver pacificamente com ele. No período de 1971-1973 Sadat praticou uma política “pendular” tentando obter suporte dos EUA e da URSS, para solucionar a questão dos seus territórios ocupados. Ao mesmo tempo, iniciou a formulação dos planos de guerra para atacar Israel e reaver os territórios perdidos.

     No ano de 1973, foram iniciadas pelo Egito e pela Síria uma série de ações visando criar condições para o início da guerra. Dentre essas, resumidamente destacamos as mais significativas e que, certamente, chegaram ao conhecimento da Inteligência israelense. Agora elas delineiam uma clara trajetória facilmente identificável para um Analista de Inteligência. Entretanto, na ocasião, elas não foram corretamente interpretadas. Senão vejamos:

- Em janeiro, os egípcios realizaram vários exercícios de mobilização (cerca de vinte, segundo as fontes consultadas).

- Em fevereiro, os estados-maiores dos exércitos egípcios e sírios realizaram uma série de contatos secretos para o início das hostilidades. Ainda nesse mês, Sadat ordenou ao estado-maior egípcio que apresentasse planos para transposição do Canal de Suez e as datas mais apropriadas para o início das hostilidades (maio, setembro ou outubro). A Inteligência israelense tomou conhecimento do fato, mas avaliou erroneamente tratando-o como se fosse apenas uma manobra de desinformação[19].

- Em março, a URSS iniciou o envio de mísseis táticos terra-ar SCUD para o Exército Egípcio.

- Em abril, a Inteligência israelense recebeu um informe de que haviam chegado ao Egito 18 caças Mirage cedidos pela Líbia e 16 caças Hawker Hunter cedidos pelo Iraque e outros tantos da Arábia Saudita e do Kuwait estavam com previsão de chegada. A inteligência israelense avaliou o dado e concluiu que isso não modificava o balanço militar estratégico entre o Egito e Israel.

- Em maio, o ministro da guerra do Egito visitou a Síria e no decorrer do período, ocorreram vários encontros entre autoridades sírias e egípcias.

- Em agosto, Anwar Sadat teve um encontro com o líder palestino Yasser Arafat e outros membros da Organização para Libertação para a Palestina (OLP). O objetivo era de informar a intenção do Egito de iniciar uma guerra contra Israel. O encontro foi noticiado no principal jornal de Beirute, o Al Nahar, e divulgado, também, paro o mundo pela Associated Press.

- Em 12 de setembro, teve lugar no Cairo/Egito um encontro dos líderes dos países fronteiriços com Israel (Síria, Egito e Jordânia). Ainda nesse mesmo mês, um jornal libanês publicou um artigo que falava sobre a deterioração de material bélico soviético cedido aos egípcios. Essa foi, certamente, uma medida de desinformação praticada pelos egípcios contra a Inteligência israelense.

- Em 25 de setembro, dois terroristas palestinos detiveram na fronteira Tcheco-austríaca um trem que conduzia judeus russos de Moscou para Viena. O chanceler da Áustria Bruno Kreisky[20] mediou a questão liberando os judeus e os terroristas. O fato causou contrariedade à primeira-ministra Golda Meir que se encontrava em visita à Europa. Ela viajou até Viena para protestar contra o fato, tentar rever a situação dos terroristas e reabrir o Centro de Imigração e Trânsito de Schonau[21]. O governo israelense viu-se totalmente envolvido com essas questões. Embora até hoje nada tenha sido provado, acredita-se que a operação tinha o objetivo diversionário.

- No dia 29 de setembro (um domingo), o embaixador de Israel nos EUA[22] recebeu de seu Adido Militar um informe proveniente de uma fonte classificada como confiável de que uma grande concentração de tropas sírias havia sido observada na fronteira norte com Israel e que um ataque era iminente. Após comunicar o fato a Israel, de imediato, ele dirigiu-se ao Departamento de Estado dos EUA onde teve uma entrevista com o Secretário de Estado Henry Kissinger. Este ficou de confirmar o assunto junto à Inteligência norte-americana. Horas depois, o embaixador recebeu uma resposta de Israel de que essa movimentação de tropas havia sido considerada como: Um exercício de rotina das forças sírias. O mesmo aconteceu com a resposta vinda da Inteligência dos EUA. Assim, acredita-se que nesse episódio possa haver ocorrido um exemplo de falsa confirmação[23].

- Em 01 de outubro, Anwar Sadat assinou o plano de operações para o dia D, do ataque - primeiro dia do Ramadan, 06 de outubro de 1973.

     Ainda nesse dia, um oficial de Inteligência do Comando Sul, capitão Benjamin Simam-Tov apresentou ao seu chefe, Tenente-Coronel David Gedaliah, um documento de Inteligência cujo Título era: “Movimento no Exército Egípcio – a possibilidade de reinício das hostilidades”. Esse documento resumia e analisava informes sobre os preparativos para a travessia do Canal de Suez. No dia 03 de outubro, Siman-Tov enviou um segundo e mais detalhado relatório. Nesses dois documentos, ele apresentou fatos importantes que poderiam estar em desacordo com a qualificação de um mero exercício atribuído ao movimento das forças egípcias. Segundo ele, a finalidade do exercício era a de camuflar as últimas fases de preparação para a guerra.

- Entre os dias 04 e 05 de outubro ocorreu a evacuação das famílias dos militares soviéticos que atuavam como assessores e sete dos doze navios de guerra soviéticos que estavam em portos egípcios, também deixaram o país.

Os fatos foram interpretados pela Inteligência israelense como uma crise nas relações entre a URSS e o Egito.

-   Ainda nas horas finais que antecederiam a guerra, a Inteligência de Israel iria receber uma série de outros informes sobre a iminência do conflito. Entretanto, o fato é que a mobilização geral das Forças de Defesa de Israel (IDF) só seria ordenada em uma reunião no gabinete de Golda Meir às 08:00h do dia 06 de outubro (sábado), depois de consultado o Diretor do AMAN General Eliyahu Zeira[24], oficialmente o responsável pela mobilização das reservas[25].

    

     As 14:00h do mesmo dia, forças egípcias e sírias iniciaram o ataque, havendo obtido a Surpresa Estratégica e, em consequência, uma vantagem inicial no teatro de operações. Mais tarde, Israel conseguiu reverter à situação e no dia 26 de outubro a guerra havia terminado e um acordo de armistício foi assinado entre os beligerantes. Apesar de Israel haver saído vitorioso e até com um maior ganho territorial, foram elevadas as perdas humanas e materiais. [26]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                 

                 

FIGURA 3 – OPERAÇÕES MILITARES NO SINAI – SEGUNDA FASE

 

    

 

 

 

                       

 

     Em 21 de novembro de 1973 foi instituída uma comissão de inquérito que foi presidida pelo jurista Shimon Agranat e se destinava a apurar responsabilidades pelas falhas ocorridas na previsão da Guerra do Yom Kippur.

     Após reunir-se por 140 sessões e ouvir 58 testemunhas, a Comissão Agranat expediu um relatório parcial em abril de 1974 e um final em 30 de janeiro de 1975[27]. Nesses relatórios foram pessoalmente responsabilizados os seguintes militares da área de Inteligência e membros do governo de Israel:

- o Diretor da Inteligência Militar (AMAN) – General Eliyahu Zeira;

- o Vice-Diretor da Inteligência Militar – General David Shalev;

- o Chefe da Divisão de Assuntos do Egito do AMAN - Tenente-Coronel Yonah Bendman; e

- o Chefe do Departamento de Inteligência do Comando Sul - Tenente-Coronel David Gedaliah.

     Após a divulgação do relatório parcial a primeira-ministra Golda Meir pediu demissão do cargo, sendo seguida pelo ministro da Defesa Moshe Dayan, pelo Chefe de Estado Maior David Elazar e pelo chefe do MOSSAD General Zvi Zamir.

    

     Concluímos, detalhando sinteticamente as falhas ocorridas na Inteligência israelense:

- A organização vigente no sistema de Inteligência de Israel impediu que o MOSSAD e o SHIN BET participassem do processo de análise da situação que antecedeu a Guerra do Yom Kippur. Eles atuaram apenas como coadjuvantes. A tarefa de produzir as Estimativas Nacionais ficou apenas sob a responsabilidade do AMAN e sem uma significativa participação dos demais serviços de Inteligência de Israel.

- O AMAN não soube interpretar corretamente os dados e conhecimentos recebidos, mantendo sua Estimativa desatualizada.

- Embora a quantidade de dados e conhecimentos recebidos, especialmente no ano de 1973, tenha sido significativa, eles não foram devidamente analisados e interpretados.

- O apego demasiadamente rígido à Concepção Estratégica vigente, criou obstáculos à percepção da iminente ameaça, uma vez que as intenções do inimigo eram claras.  Concepções rígidas, muitas vezes levam a percepções errôneas.

- A síndrome do falso alarme, que consiste na repetição de alertas que não se materializam em ação, criou um efeito de desgaste na vigilância, iludindo e confundindo as análises da Inteligência israelense.

- O diretor do AMAN tinha como responsabilidade dar a ordem para o início da mobilização. Isso contraria um dos preceitos básicos da Atividade de Inteligência: Quem assessora não deve participar do processo decisório. Essa a tarefa deveria ter ser atribuída a uma autoridade do poder executivo.

     O resultado das investigações realizadas após a Guerra do Yom Kippur nos dá um belo exemplo de responsabilidade, seriedade, patriotismo e respeito às instituições.

     As Forças de Defesa de Israel (IDF) e o Serviço de Inteligência são duas instituições de maior prestígio em Israel, pois a perenidade do Estado depende unicamente deles. Entretanto, suas falhas não são perdoadas. Israel só pode escolher entre a aniquilação ou a vitória, não existe outra opção.

     No presente caso, todos os militares, a maioria deles heróis da Guerra dos Seis Dias, e que ocupavam altos cargos no governo, no IDF ou na Inteligência foram afastados ou pediram demissão. A própria primeira-ministra Golda Meir, uma das fundadoras do Estado de Israel, triste e envergonhada, afastou-se do seu cargo e da vida política. Ao final, mesmo vitoriosos e com o seu território aumentado eles não foram eximidos de culpa por haverem sido surpreendidos.

6 - CONCLUSÃO

     Ao concluir o presente artigo esperamos haver mostrado a importância da produção de Estimativas como instrumento de assessoria ao Estado. As Estimativas não são produzidas de forma intuitiva, mas sim baseadas em uma metodologia própria e embasadas em técnicas assessórias. Sem dúvida elas são documentos de complexa elaboração, pois exigem muita experiência por parte dos analistas e uma perfeita integração e harmonia entre todos os profissionais envolvidos no trabalho. As Estimativas são, certamente, o produto mais nobre e importante produzido pela Atividade de Inteligência, pois levam ao usuário ou decisor uma análise prospectiva voltada para eventos futuros.

 

O autor é Capitão de Mar e Guerra, Membro Emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB), Conferencista Emérito da Escola Superior de Guerra (ESG) e Conferencista Convidado do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER).


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BETTS, Richard K. e Thomas G. Mahnken. Paradoxes of Strategic Intelligence. New York: Rooutledge, 2008.

BLACK, Ian e Benny Morris. Israel Secret Wars. A History of Israel’s Intelligence Service. New York: Grove Press, 1991.

DEACON, Richard. The British Secret Service. New Work: Taplinger Publishing Co. INC, 1970.

FRIEDMAN, George. The next 100 years. New York: The Doubleday Publishing Group, 2009.

GAUB, Florence, Predicting the Arab Spring: what we got wrong. Jane’s Defense Weekly, 08 de fevereiro de 2012.

GODSON, Roy, Intelligence Requirements for the 1980’s: Analysis and Estimates. Washington, D.C.: National Strategy Information Center, 1980.

HERZOG, Chaim. A Guerra do Yom Kippur. Biblioteca do Exército – editora, 1977.

KUMARASWAMY, P.R, Revisiting the Yom Kippur War. London: Frank Cass Publishers, 2005.

SHULSKY, Abram N. Silent Warfare. Understanding the World of Intelligence. Washington: Brassey’s, 1993.

 



[1] No Brasil, desde 1991, o termo Informações foi substituído por Inteligência.
[2] Na terminologia da Atividade de Inteligência, conhecimento são os dados já processados. Dado é todo material que ainda não foi processado pelos analistas de Inteligência.  Na língua inglesa o dado é traduzido como raw information ou raw data e conhecimento é traduzido como finished Intelligence ou simplesmente Intelligence.
[3] Sir Francis Bacon.
[4] A Comunidade de Inteligência dos EUA foi criada em 1947 pelo National Security Act. Ele organizou, de forma sistêmica, as diversas agências de Inteligência que haviam atuado durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente o Office of Strategic Services (OSS) organismo precursor da CIA.
[5] Office of National Estimates (ONE).
[6] National Intelligence Estimates (NIE).
[7] O National Intelligence Council (NIC) é um centro voltado para estudos prospectivos. Possui treze áreas de estudos que são chefiados pessoas de notório saber oriundos de órgãos da comunidade de Inteligência e de outros organismos governamentais. Essas áreas de estudo são: África, Ásia Oriental, Sudeste Asiático, Oriente Médio, Rússia e Eurásia, Europa, Hemisfério Ocidental, Assuntos Econômicos, Assuntos Militares, Ameaças Transnacionais, Alertas, Proliferação de Armas de Destruição Massiva e Ameaças Transnacionais.
[8] Joint Intelligence Committee (JIC).
[9] O Cabinet Office é o departamento do governo do Reino Unido responsável por assessorar o primeiro-ministro.
[10] MOSSAD é o acrônimo de Ha Mossad leModi'in uleTafkidim Meyuchadim ou Instituto para Inteligência e Operações Especiais. Esse serviço atua no Campo Externo em ações de espionagem.
[11] SHIN BET ou SHABAK é o acrônimo de Sherut haBitachon haKlali ou Agência de Segurança Interna de Israel. Ele atua no Campo Interno abrangendo a contraespionagem e o contraterrorismo.
[12] AMAN é o acrônimo de Agaf HaModiin – lit. O AMAN é o serviço que coordena a Atividade de Inteligência nas Forças de Defesa de Israel (IDF).
[13] Islamic State in Iraq and Syria (ISIS).
[14] Yom Kipur ou Kippur é um dos dias mais importantes do judaísmo. No calendário hebreu começa no crepúsculo que inicia o décimo dia do mês hebreu de Tishrei (que coincide com os meses de setembro ou outubro). Os judeus tradicionalmente observam esse feriado com um período de jejum de 25 horas e reza intensa.
[15] Port Said, Ismália e Suez, que contavam com cerca de 750.000 habitantes.
[16] Nome dado em homenagem ao General Haim "Kidoni" Bar-Lev, herói da Guerra dos Seis Dias e que teve papel destacado na Guerra do Yom Kippur.
[17] Concepção Estratégica é o estudo, definição e indicação de estratégias a serem seguidas pelo Estado.
[18] Pela Doutrina Militar Soviética os confrontos de atrito e os constantes exercícios militares junto a uma região de fronteira ou uma Linha de Frente estabilizada faziam parte de uma estratégia de dissimulação, cujo principal propósito era o de iludir e confundir o inimigo. Ela foi transmitida aos egípcios pelos assessores militares soviéticos.
[19] Desinformação consiste na manipulação planejada de conhecimentos ou dados com a finalidade de confundir ou iludir o inimigo.
[20]Bruno Kreisky embora filho de um judeu era anti-sionista. Possuía muito boas relações com líderes árabes dentre os quais  Anwar Sadat e Muamar Gaddafi. Em 1980 a Áustria estabeleceu relações diplomáticas com o Exército de Libertação da Palestina (OLP).
[21] O Centro de Imigração e Trânsito de Schonau destinava-se a receber judeus russos que estavam imigrando para Israel. Lá permaneciam por alguns dias, enquanto eram entrevistados sobre sua capacitação. Havia sido fechado por Bruno Kreisky, atendendo a pressões árabes.
[22] Era embaixador de Israel nos EUA o diplomata Simcha Dinitz, homem de grande experiência em sua profissão e amigo pessoal do então Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, também descendente de judeus.
[23] Na terminologia da Atividade de Inteligência denomina-se Falsa Confirmação informes provenientes de destinatários diferentes, entretanto oriundos de uma mesma fonte.
[24] O General Eliyahu Zeira havia assumido o AMAN há apenas um ano antes da guerra e já encontrou as diretrizes de trabalho previamente estabelecidas. Assim, decidiu aceitar a Concepção Estratégica existente, sem se preocupar com o cotejo do fluxo de informes que o Serviço que dirigia estava recebendo.
[25] O núcleo base do exército de Israel já se encontrava em estado de alerta.
[26] Israel teve 2.800 militares mortos, 8.800 feridos, 400 carros de combate destruídos e 102 aviões abatidos.
[27] O texto completo do Relatório Agranat (cerca de 1500 páginas) só foi tornado publico em 01 de janeiro de 1995, exceto 48 páginas que permanecem até hoje classificadas.