sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014


Energia

'Problema do setor elétrico não é apenas falta de chuva’

Nicola Pamplona   (nicola.pamplona@brasileconomico.com.br)
07/02/14 16:00
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“A operação do setor está politizada”, afirma o engenheiro Roberto Pereira D’Araújo. Foto Marcio Mercante

 

O engenheiro Roberto Pereira D’Araújo diz que, para segurar o preço da energia, o governo demorou a acionar as usinas a gás

Diretor do Instituto Ilumina de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético, o engenheiro Roberto Pereira D'Araújo contesta a avaliação do governo sobre a situação do setor no Brasil. Com passagem pelo Conselho de Administração de Furnas na primeira gestão do PT, Araújo diz que a opção por segurar os preços da eletricidade nos últimos anos está na raiz dos problemas que o país enfrenta agora, com reservatórios das hidrelétricas baixos e dependendo de chuvas para reduzir os gastos com termelétricas. "Em março de 2012, já havia sinais de que a hidrologia estava mal. Porque não se ligaram as térmicas? Porque só deixou para ligar depois da MP 579 (que reduziu a tarifa de energia)? Isso é uma coincidência que precisa ser explicada", questiona o especialista, que defende ainda maior atenção para a geração distribuída e a eficiência energética, com o objetivo de reduzir a necessidade de grandes investimentos em geração.

Qual sua avaliação sobre o cenário atual do setor elétrico?

Primeiro, vou falar o que acho que não é. Não é falta de chuva e não é consumo excessivo. Se pegarmos o gráfico da carga brasileira de energia desde os anos 2000, veremos que é uma reta, dá para saber exatamente o que vai acontecer no ano seguinte. Se pegar também dados do ONS sobre hidrologia, vê-se que, em 2013, apesar da seca no Rio São Francisco, o Sudeste teve uma hidrologia excelente. Então, na soma dos quatro subsistemas, ficou com 97% da média histórica. Não há deficiência de hidrologia, quando se olha no longo prazo. E o longo prazo no Brasil é o ideal, porque temos reservatórios. E os reservatórios, que estão hoje com 40% da capacidade, tinham que ter água de 2013. Mas parece que não têm. Ou seja, parece que, com a obsessão de não ligar as térmicas porque a tarifa está cara e também para não reconhecer que o sistema está desequilibrado, vai-se usando predatoriamente os reservatórios. O reservatório não se esvazia apenas porque não tem água entrando, mas também se esvazia porque tem água demais saindo.

Quer dizer, gerou-se pouca térmica nos últimos anos?

O que é estranho é o seguinte: 2012 foi um ano bem pior que 2013, do ponto de vista da hidrologia. Em janeiro e fevereiro choveu bastante, mas em março mudou. A energia natural afluente já cai bastante. Mas de março até setembro, foi como se tivesse tudo uma maravilha. Houve, inclusive, uma redução do despacho térmico até setembro. Depois, com a MP 579 (que renovou automaticamente contratos de concessão de hidrelétricas, reduzinda as tarifas), que deu uma impressão que teríamos uma certa folga na tarifa, decidiram ligar as térmicas. Ligaram todas elas em um padrão que não se encontra no histórico. Hoje, o sistema está operando ao custo marginal de operação muito alto, R$ 820 por megawatt-hora (MWh) é cinco vezes o preço de uma usina nova. Uma usina nova sai por R$ 120, R$ 130. Tem usinas a gás que saem a R$ 150. O que significa isso? O sistema está pedindo, pelo amor de Deus, "me dê usinas novas". Porque, com essas usinas que estão aí e com essa hidrologia, que não é ruim, não estamos conseguindo, mesmo com uso exagerado das térmicas. A térmica ligada tem um significado de desequilíbrio do sistema muito grande, todo mundo sabe disso. Um custo marginal de operação muito acima do custo marginal de expansão por muito tempo, significa que o sistema está desequilibrado.

Está desequilibrado por que? Falta investimento em geração?

Falta investimento em geração e falta investimento em transmissão. Eu reconheço que o atraso na entrega de energia do Rio Madeira foi muito ruim. A promessa é que a linha de transmissão estaria funcionando em maio. Mas quem conhece um projeto desses, de alta complexidade tecnológica, sabe que não funciona assim. Então, isso vai demorar a funcionar. E não é só a ligação do Rio Madeira com São Paulo. Recebendo essa energia, vai ter que expandir a rede básica para que consiga distribuí-la, senão vai gerar outro problema. Se tivesse isso aí, provavelmente, a gente não estaria passando pelo que está passando. O que ficou claro para mim é o seguinte: está faltando usina, está faltando construir usina. Normalmente, todo ano as chuvas enchem os reservatórios, que começam a verter água. Mas o sistema não está vertendo mais. Não enche o reservatório a ponto de verter água. É um indicador de que não estamos conseguindo encher os reservatórios.

Agora, enquanto novas usinas não ficam prontas, qual a alternativa?

É a térmica na base. Mas veja bem: o governo fez no passado leilões genéricos, com a concorrência entre térmicas, eólicas, bicombustível, etc. Como se nós do setor elétrico não soubéssemos o que é preciso. Foi o mercado quem definiu. Em 2008, contratou térmica a diesel e a óleo combustível. São térmicas que raramente serão usadas e que têm que considerar na oferta. Essas térmicas não são feitas para funcionar o tempo todo, não são térmicas de base. Térmica de base é carvão, nuclear e gás. Óleo combustível e diesel são combustíveis sujos, precisa parar, fazer manutenção, se não começa a reduzir a eficiência. Se olharmos os relatórios do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), vamos ver que tem várias térmicas que não conseguem gerar o que está programado.

Vê-se nos relatórios do ONS que há hoje uma grande diferença entre a capacidade instalada
e a quantidade de energia disponível...

Até porque, não tem gás. Estamos importando gás natural liquefeito porque não tem gás. O que o governo tinha que ter feito lá no passado, seis anos atrás? Tinha que ter se esforçado para montar uma base térmica, principalmente a gás, porque tem um preço razoável, abaixo de R$ 200 por MWh. Mas construiu uma base térmica totalmente incompatível com o setor elétrico brasileiro. E outra coisa: porque nos esquecemos das pequenas centrais hidrelétricas? Tem uma quantidade enorme de pequenas centrais, que têm a vantagem de ficar perto dos centros de consumo. Precisa tomar conta disso, olhar os projetos e aprovar. E tem outro ponto: eu moro no último andar de um prédio, tenho um telhado de 15 metros quadrados. Pedi a um amigo uma conta de quanto custaria para colocar um painel fotovoltaico e quanto geraria de energia. Ele disse que geraria mais ou menos 900 kWh. Dá para gerar energia para todos os vizinhos durante o dia. Mas custa R$ 40 mil para implantar. É preciso de uma política para isso. Dê uma volta por shopping centers de São Paulo e do Rio, quantas lojas você vai ver com lâmpadas dicróicas de 50 watts? Pega uma lâmpada dicróica dessas e substitui por uma lâmpada de LED de 5 watts, que faz o mesmo serviço. Sobram 45 watts. E mais, a LED não esquenta, enquanto a dicróica queima sua mão. Uma lâmpada LED no Brasil é artigo de luxo. As políticas se limitam à visão de gerar energia. Como se gerar energia, transmitir e usar energia não fossem a mesma coisa. Cada lâmpada dessas que eu trocar, seria como uma microusina: eu disponibilizo para o sistema mais 45 W para outro usar.

O sr. acha que, com a situação atual do parque gerador, resistiremos ao ano de 2014?

O problema de morar num país tropical é a incerteza sobre a energia que vem dos rios. Para se ter uma ideia, no Sul, pode ter um ano que gere 100 e outro ano que gere 600, a diferença é de um para seis. No Sudeste, é de um para seis. No Norte, é de um para 10. As variações são muito grandes. Então, fico desconfiado quando alguém diz que o risco de racionamento é de 20%. É impossível de prever. Pode dizer hoje que vai ter racionamento e depois cair uma chuvarada danada, que enche os reservatórios novamente.

Mas teremos que continuar com alta dependência das térmicas...

Com certeza. Como é o comportamento médio da hidrologia? Começa em dezembro e acaba em março. Em abril, é só decréscimo e volta a subir de novo em novembro. A não ser que haja uma inversão - e não conheço nenhum exemplo no histórico do setor - a gente vai ter que manter essas térmicas ligadas. Fico abismado como uma autoridade diz que o sistema está em equilíbrio estrutural, quando estamos com uma conta bilionária de térmicas. Isso é um sintoma de que o sistema está desequilibrado. E ontem vi o Marcio Zimmermann (secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia) dizer que o sistema está equilibrado. Não está, está completamente desequilibrado.

Vivemos o resultado de uma opção pelo custo mais baixo?

A MP 579 foi péssima para o Brasil. Na realidade, o MWh brasileiro, quando o sistema está equilibrado, usando térmica esporadicamente, é baixo, entre R$ 120 e R$ 130. Bota isso em dólar e vê como é nos Estados Unidos. O problema da tarifa cara no Brasil não é o MWh. Aí, chega em 2012, e inventa uma história de intervir na tarifa. Inventaram uma fórmula dizendo que sua tarifa vai ser tanto, o que praticamente inviabilizou a Eletrobrás, que está com um prejuízo monstruoso, está queimando patrimônio, para conseguir uma redução tarifária pequena. E já tínhamos sinais para ligar as térmicas muito antes. Mas não, decidiram esperar para ver se as chuvas iriam cair, porque a tarifa estava lá em cima.

Tomou-se um risco maior, então?

Não consigo entender. Se olhar o gráfico de geração térmica, vê-se que triplicou depois do anúncio da MP 579. É até aceitável um aumento de 20%, por exemplo, mas multiplicou por três e tem se mantido neste nível. Em março de 2012, já tinha sinais de que a hidrologia estava mal, 2012 foi um ano ruim. Porque não se ligou as térmicas? Porque só deixou para ligar depois da MP 579? Isso é uma coincidência que precisa ser explicada. Parece que o próprio setor, que a própria operação, está totalmente politizada.