terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Relatório D.C. - Relatórios: beba com moderação
25/02/14 11:00 | Rogerio Studart (rogerio.studart@brasileconomico.com.br)
Há duas semanas, o documento do BC norte-americano “Monetary Policy Report”, de 11/2, foi muito comentado na nossa imprensa — especialmente no capítulo intitulado “Estresse financeira e vulnerabilidade das economias emergentes”, em que apresenta um ranking no qual o Brasil aparece como uma das economias mais vulneráveis do planeta
O mandato do Fed é estritamente voltado a controlar a inflação e apoiar um crescimento sustentado nos Estados Unidos. Portanto, não surpreende que a proposição daquele capítulo fosse basicamente demonstrar que o estresse não foi consequência das políticas monetárias norte-americanas. Essa proposição facilita aos EUA, um membro do G20, seguir com uma politica monetária não convencional pelo tempo que lhe parecer necessário, sem maiores considerações com os seus impactos sobre a estabilidade econômica global. Não surpreende, tampouco, que, como demonstrou o ex-ministro Delfim Netto em artigo recente, o ranking tenha problemas metodológicos graves que colocam em dúvida suas qualidade técnica e isenção.
Na última semana, foi a vez de um documento do FMI apresentado no G-20 - "Global Prospects and Policy Challenges" ("Perspectivas Globais e Mudanças Políticas", GPPC), encontrado no site da instituição (www.imf.org/external/np/g20/021914.htm). O documento tem sido citado na imprensa brasileira como comprovação do diagnóstico do Fed e como guia para políticas no Brasil, sem muitas considerações sobre as particularidades que moldam a abordagem dessas instituições. Isto é no mínimo um erro. Vejamos.
O GPPC não apresenta uma análise muito diferente das que vem apresentando a instituição, e também o Banco Mundial, desde o fim do ano passado. A análise começa evidenciando três aspectos recentes da conturbada trajetória da economia global. Primeiramente, comemora a recuperação da economia mundial, capitaneada pela expansão da demanda agregada em economias avançadas. Segundo, chama a atenção para a perda de dinamismo das economias emergentes (EMs), da pequena melhoria da demanda externa que supostamente as teria beneficiado. E, por fim, indica que essa perda de dinamismo das EMs se deve a "condições financeiras mais restritas", influenciadas por três fatores:
(1) uma revisão por parte dos mercados sobre a solidez dos seus fundamentos;
(2) um aumento da aversão ao risco; e
(3) a sinalização por parte das autoridades norte-americanas de uma possível revisão da sua política monetária "não-convencional".
O documento informa que é "de difícil identificação" a relação causal entre os três fatores acima. Entretanto, se vamos para a página 4 do mesmo, encontramos dois gráficos: um indicando o desemprenho dos mercados de capitais e outro dos mercados de títulos públicos. Em ambos, se nota claramente que a reversão das "condições financeiras" para as EMs foi determinada pelo início dos anúncios do o Fed, sobre a possibilidade do tapering ainda no primeiro semestre de 2013.
Ou seja, parece não haver dúvida sobre a causalidade do processo: o prenúncio do tapering foi o "gatilho" que fez com que os investidores internacionais começassem a revisar os seus portfolios, antecipando os efeitos que tal política teria sobre os futuros fluxos de capitais para economias emergentes.
A partir daí, poderíamos descrever um fluxo causal: esse gatilho iniciou um processo em cadeia para um grupo de EMs, incluindo o Brasil, em que primeiramente gera uma pressão pela reversão dos fluxos de capital (de saída das EMs e retorno a economias industriais) e subsequente pressão por desvalorização cambial. Em segundo lugar, gera uma reposta de política das autoridades das EMs que, temendo uma desvalorização cambial abrupta que levasse a uma aceleração da inflação, se sentem obrigadas a implementar políticas monetária e fiscal mais restritivas.
Essa resposta não só adia a desvalorização cambial (que, se realizada com controle e paulatinamente, poderia ajudar a reequilibrar o desequilíbrio de balanço de pagamentos), como também termina por deprimir a atividade doméstica e provocar de fato um enfraquecimento do crescimento.
E, por fim, um menor crescimento, dada a estrutura tributária, tende a criar uma deterioração fiscal, especialmente pela queda de receitas e uma maior dificuldade em manter superávits fiscais necessários para uma saudável trajetória da queda da dívida pública. Ou seja, os vaivéns da política do Fed geram uma cadeia de respostas que podem terminar provocando, no médio prazo, uma "profecia auto-realizável" sobre a fraqueza dos fundamentos.
É evidente, portanto, que a ordem dos fatores altera o produto, no caso de um diagnóstico - mas também nas soluções propostas. Isto se confirma nas recomendações que surgem ao longo do texto. A primeira recomendação para os membros do G-20 é que as economias avançadas deveriam evitar abortar a incipiente e frágil recuperação com reversões abruptas de suas políticas monetárias expansionistas e buscar um processo suave, sem pressa e bem medido de consolidação fiscal.
A figura muda em relação às EMs, a quem o Fundo envia uma mensagem bem mais dura: necessitam de "políticas e regimes macroeconômicos críveis, além de políticas cambiais flexíveis, críticas para enfrentar as turbulências". Por fim, ao falar em horizontes mais longos, a receita para a prosperidade do FMI inclui implementar políticas voltadas a melhorar a competividade, investimentos em infraestrutura, reformas trabalhistas e, por fim evitar o "ressurgimento de desequilíbrios globais".
A tradição destas instituições é que a deterioração dos fundamentos de um país é causada primordialmente por políticas domésticas inconsistentes; e que, portanto, o problema do ajuste deve recair em quem a produziu. Muito recentemente, como um reconhecimento da crescente interconectividade das economias nacionais, o mundo multilateral começou a reconhecer que, no caso de "economias sistemicamente relevantes", o problema é de todos nós.
Tendo em vista que tanto os chamados desequilíbrios globais que levaram à crise, quanto os problemas recentes das EMs (que são economias sistemicamente importantes) têm como principal origem as políticas das economias industrias, poder-se-ia esperar que as recomendações advindas de documentos dessas instituições reforçassem a necessidade de responsabilidade coletiva. Mas, ao que tudo indica, estamos recaindo em erros antigos.
O problema não é evidentemente a capacidade técnica dos autores - mas reside ainda na assimetria da governança econômica global, na qual economias industriais continuam a dominar as instituições multilaterais. Por essa razão, suas perspectivas continuam a dar o tom de como determinadas mensagens são enviadas: por exemplo, explicitar no momento a principal origem dos problemas atuais em um documento oficial da instituição seria interpretado como uma agressão aos seus principais quotistas e acionistas. Aí reside, a meu ver, a razão porque são tão evidentes as assimetrias, tanto no diagnóstico quanto nas recomendações e no tratamento dos desafios enfrentados por economias industriais e emergentes.
À vista dessas assimetrias, talvez o ideal seja que essas publicações viessem com algum manual de leitura, ou pelo menos com um alerta ao leitor: "Leia com moderação".