O brasileiro
Bernardo dos Santos distribui kits de ajuda emergencial para pessoas deslocadas
pelo Boko Haram. que se encontram no Lago Chade. Foto: ACNUR Chade
No Chade,
brasileiro descreve sua experiência no auxílio a mais de 400 mil refugiados
Após
uma sequência de tensões políticas e guerras civis, o Chade finalmente parece
desfrutar da paz. No país há quatro meses, o brasileiro Bernardo dos Santos, do
ACNUR, conta os impactos dos conflitos nos países vizinhos à estabilidade da
nação e como as ofensivas do Boko Haram intensificaram a chegada de refugiados
ao país.
Ao leste,
o Sudão. Ao norte, a Líbia. Ao sul, a República Centro-Africana. E no sudeste,
a Nigéria. No meio de todas essas crises se encontra o Chade, um país sem
acesso ao mar e considerado um dos menos desenvolvidos do mundo. Diferente de
seus vizinhos, desde 2008 o país vive um período de harmonia, marcado por forte
crescimento econômico, graças à exploração de petróleo.
Em menos
de uma década, a nação se reinventou. Desde sua independência, em 11 de agosto
de 1960, viveu uma sucessão de guerras civis e disputas de poder inter-religiosas.
Hoje, no entanto, passou a representar um porto-seguro para 452.897 refugiados
da região, segundo os números oficiais do Alto Comissariado da ONU para os
Refugiados (ACNUR). Quem conta é o brasileiro Bernardo dos Santos, que há
quatro meses trabalha no país ajudando a dar visibilidade a esta causa.
Na área de
relações externas do ACNUR no Chade, Bernardo traduz em palavras o trabalho
árduo realizado em campo com o objetivo de angariar apoio político e financeiro
para as operações humanitárias. Em seu dia a dia reúne dados e especificações
técnicas para convertê-los em “uma linguagem facilmente compreensível para o
público em geral e para as autoridades engajadas”, explica.
Formado em
ciência política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bernardo
conta que trabalhar a favor da paz, da reconstrução pós-conflito, dos direitos
humanos e do direito humanitário foram as principais motivações que o levaram a
navegar neste rumo. Após passar por Timor Leste e República Democrática do
Congo com a ONU, Bernardo hoje vive na capital chadiana de N’Djamena, onde
diariamente lida com a realidade daqueles que, para conservar a vida,
abandonaram todo no Sudão, República Centro-Africana e Nigéria.
Primeira
missão à zona de conflito
Em sua
primeira viagem para conhecer a realidade dos deslocados, Bernardo visitou uma
das zonas mais perigosas do país, onde, no campo de refugiados de Dar es Salam,
homens, mulheres e crianças tentam recomeçar. Nas margens do Lago Chade, desde
2013 esta área transformou-se em porta de entrada para um fluxo cada vez mais
constante de refugiados que fogem a violência imposta à região pelo grupo
extremista Boko Haram.
Segundo
Bernardo, o número estimado de refugiados da Nigéria, Níger e Camarões desde
2013 nesta localidade é de mais de 14 mil pessoas.
“Deste
total, o ACNUR acolhe 7.139 em uma área chamada de Dar es Salam”, sublinhou
Bernardo, explicando que o restante dessa população prefere viver fora do campo
para continuar suas atividades de pastoreio e pesca. “A todos, o ACNUR oferece
apoio material e alimentar irrestrito”, complementou.
As
condições de vida inóspitas e escassos recursos sensibilizaram o brasileiro,
que destacou a resiliência dos novos habitantes dessas terras.
“A
característica mais marcante dessa área é definitivamente o Sahel, última faixa
de parca vegetação antes do deserto do Saara. A temperatura média é de 42 graus
à sombra. A vegetação não é abundante, uma vez que a flora é de esparsos
arbustos baixos e poucas folhas”, descreveu. “Mesmo sabendo que as populações
que lá se refugiam são em sua maioria nômades e acostumadas a lidar com essas
condições, não é fácil vê-las vivendo em abrigos temporários, alheias aos seus
meios de sobrevivência, em grande parte traumatizadas pelo conflito que as
fizeram fugir e com poucas perspectivas de retorno às suas antigas vidas.”
Confiança
na paz
Nesta
região, o exército do Chade empreendeu ofensivas recentemente contra o Boko
Haram em um esforço regional para extinguir o grupo extremista, que tem deixado
no país um rastro brutal de ataques. Em junho, as hostilidades chegaram à
capital N’Djamena, que sofreu uma série de ataques que deixaram mais de 50
mortos e 100 feridos.
“Não é
ainda possível avaliar se a ofensiva contra o Boko Haram na região do Lago
Chade terá sucesso. Os elementos do Boko Haram são em grande parte do grupo
étnico Boudouma, nativos da área, que é hoje teatro de operações militares e
possuem profundo conhecimento do terreno onde lutam”, descreveu Bernardo.
Apesar do
cenário conturbado, há esperança da população local no processo de estabilidade
e paz dentro do país, pontuou Bernardo.
“Há
equilíbrio de interesses dentro das elites nacionais e a população, ainda
traumatizada com o passado recente e tendo como referência três países vizinhos
ainda em crise. Elas estão satisfeitas com a sensação de paz e estabilidade”,
disse. “A presença do Boko Haram na região do Lago Chade não parece colocar em
questão a capacidade do governo de proteger o país e os métodos radicais e
indiscriminados deste grupo não criam sensação de conflito inter-religioso”,
concluiu.
Ele
lembrou que o país protege refugiados centro-africanos e sudaneses há mais de
dez anos, fazendo com que a necessidade destas populações tenha se convertido
de “emergencial para cotidiana”. Desde 2012 o governo lidera iniciativas para
torná-los mais autossuficientes e integrados à sociedade chadiana, citou
Bernardo, que destacou o compromisso do país para não deixar que os campos de
refugiados se transformem em uma solução permanente.
“O
programa oferece treinamento profissional em áreas como carpintaria,
metalurgia, mecânica e costura, assim como em culturas agrícolas, para que
estas populações possam aos poucos tornarem-se independentes de ajuda
humanitária”, contou. “O governo do Chade não mede esforços para ajudar estas
populações e autoriza o uso de terrenos aráveis para plantio e integra as
escolas e os centros de formação profissional para refugiados em seu sistema
nacional.”