terça-feira, 6 de maio de 2014


China potência: custos, oportunidades e incertezas


Para o Brasil, são enormes as possibilidades que se abrem na China— em termos comerciais, de investimento estrangeiro e de cooperação cientifica e tecnológica


Rogério Studart – Jornal BrasilEconômico


A partir de alguns indicadores de um relatório do Banco Mundial (International Comparison Program), anunciou-se com grande estardalhaço que a República Popular da China tornou-se, neste ano, a maior economia mundial. Para uma nação que em 1980 tinha um Produto Interno Bruto (PIB) equivalente a menos de 7% do PIB americano, a notícia representaria um feito hercúleo, motivo de grande júbilo para todos. Nem tanto, diriam muitos analistas. Para o povo chinês, os ganhos em termo de melhoria das condições de vida e redução da pobreza foram enormes — mas também o foram os custos sociais, ambientais e políticos. E os desafios para superá-los são igualmente gigantescos. Para o restante do mundo, já marcado pela perda de dinâmica (especialmente no setor manufatureiro) das economias centrais, a ascensão da China pode trazer muitas oportunidades — mas, sem dúvida, muita incerteza.

São pelo menos três custos que a China teve de pagar pelo seu sucesso. O primeiro é o aumento da desigualdade, conforme demonstra um artigo de dois sociólogos (Yu Xie e Xiang Zhou) da Universidade de Michigan, publicado pela National Academy of Science (pnas.org). Segundo os mesmos, hoje em dia ela supera aquela dos Estados Unidos — que, por sua vez, notoriamente vinha crescendo antes da crise de 2008 e muito mais ainda depois da mesma. Como descrevi nesta coluna na semana passada, mesmo nos países desenvolvidos onde o individualismo e a cobiça foram vendidos nas ultimas décadas como virtudes, o alto grau de desigualdade está sendo questionado nas mídias, e especialmente nas ruas. Imagine-se em um país cujo discurso sobre as virtudes do socialismo e do coletivismo ainda fazem parte do inconsciente coletivo.

O segundo custo é o da deterioração ambiental, que afeta a todos os chineses — mas diretamente àqueles que vivem nas principais zonas urbanas de alto crescimento. O problema hoje já é tido como uma ameaça gravíssima de saúde pública — os níveis de poluição do ar param as megacidades chinesas constantemente, enquanto cerca de 60% da água subterrânea da China está poluída para consumo sem um tratamento prévio; e mais de 16% do solo têm níveis de contaminação elevados, sendo que mais de 82% desta área contaminada possui poluentes inorgânicos tóxicos (como cadmio, mercúrio, arsênico e chumbo). Mas também colocam em xeque os limites do crescimento econômico futuro, já que a degradação ambiental representa redução dos recursos naturais internos, em muitos casos irreversível.

O terceiro custo da rápida ascensão ao pódio de potência econômica resulta dos outros dois citados (desigualdade em alta e degradação ambiental): um crescimento preocupante da tensão política. Por exemplo, segundo Yukkon Huang, do Carnergie Endowment for International Peace, um dos mais importantes think thanks de relações internacionais nos Estados Unidos, entre 1993 e 2009 o número de protestos populares ao ano subiu de cerca de 10 mil para algo em torno de 160 mil.

Não é por outra razão que o último plano decenal do governo chinês — definido a partir do terceiro plenário da reunião do Partido Comunista Chinês (PCC) no fim do ano passado — tem quatro grandes metas: promover um crescimento com ampliação do papel do setor privado e maior produtividade; reduzir as desigualdades de renda entre regiões e entre áreas urbanas e rurais; manter estabilidade política e a capacidade do PCC em promover esta transição; e reverter o quadro de degradação ambiental. São tarefas não só cruciais, mas complexas (potencialmente desestabilizadoras) dentro dos atuais parâmetros de organização econômica e política.

Para ilustrar a última mensagem, basta um exemplo. Primeiramente, para manter o crescimento inclusivo alto (que passa necessariamente por aumento dos salários reais acima do crescimento do PIB), as autoridades apostam em aumentar a produtividade – por dois caminhos. O primeiro envolve a ampliação da participação dos mercados na definição de preços de bens e dos fatores, o que implica reduzir o número e o tamanho de empresas públicas — que ainda são dominantes, especialmente na indústria pesada. Essas empresas foram sistematicamente instrumento de políticas de transformação industrial, e, mais recentemente, de políticas contracíclicas. São também as empresas que, devido ao enorme aumento de investimentos dos últimos anos, sofrem de excesso de capacidade e queda de rentabilidade. Como se espera atrair investimentos privados dentro deste quadro?

O segundo caminho envolve o aumento da produtividade dos trabalhadores das áreas rurais. Isto poderia ser obtido promovendo migrações substanciais de trabalhadores das áreas rurais para as urbanas. Nessas últimas se concentram não só os setores econômicos mais produtivos, como também o acesso a melhores escolas – especialmente para os filhos de migrantes. O processo já vem ocorrendo, porem é sistematicamente reprimido. E há alguma lógica (mesmo que perversa) nas restrições à mobilidade demográfica: numa nação de 1,4 bilhões de habitantes e onde o desenvolvimento tem se concentrado em um número relativamente limitado de megacidades, permitir o livre fluxo humano tende a gerar enormes problemas urbanos (que nós brasileiros conhecemos bem), agravar a demanda por recursos crescentemente escassos (água e terra) e, por fim, aumentar a insatisfação social.

O fato de a China estar se tornando uma potência implica, portanto, oportunidades — e também maiores incertezas. Para os chineses, a opção da sua liderança política de reformar o sistema econômico e político permite vislumbrar uma China ainda mais próspera, com maiores oportunidades para todos, e, especialmente, mais aberta politicamente. Para o mundo, apresenta um sinal de esperança de que a perda de dinamismo das economias (até o momento) centrais seja mais do que compensado por uma China potência nas próximas décadas. Para o Brasil, uma nação que já tem uma experiência reconhecida em inclusão socioeconômica e sustentabilidade ambiental, e uma parceira consolidada dentro dos Brics, são enormes as possibilidades que se abrem — em termos comerciais, de investimento estrangeiro e de cooperação cientifica e tecnológica. Porém, o caminho para uma “sociedade harmoniosa” será inevitavelmente um processo de “destruição criativa”, que, se não for cuidadosamente levado a cabo, pode acabar gerando mais tensão política interna, e ainda maiores incertezas econômicas para o resto do mundo.