sexta-feira, 30 de maio de 2014


Dez anos no Haiti: a missão militar ajudou a projetar o Brasil no mundo?


BBC


Quando o Brasil assumiu a liderança militar da força da ONU no Haiti, há dez anos, havia mais do que vontade de ajudar o pobre país caribenho a se recuperar de um período de desordem civil.

O Brasil, naquela época, se empenhava em pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, o que poderia selar a emergência do país como importante ator global.

A estratégia para essa conquista parecia simples.

Haitianos haviam testemunhado em fevereiro de 2004 a saída do presidente Jean-Bertrand Aristide do poder, depois de uma intervenção americana.


Grupos armados dominavam o interior e partes da capital, Porto Príncipe, mantendo um clima de medo nas ruas. A ONU, então, interveio, com uma missão que celebrará 10 anos neste domingo.

 

Ao mesmo tempo, o Brasil ampliava sua influência na América Latina e no mundo, e o papel de destaque na força da ONU, a Minustah, lhe renderia prestígio internacional - o país ainda tem o maior contingente na missão.

Analistas relacionam a forte presença no Haiti à antiga ambição na ONU: o sucesso da missão ajudaria na obtenção de uma cadeira permanente no conselho, pleito defendido com vigor pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Essa versão é disputada pelo Itamaraty, que a vê como um reducionismo do empenho brasileiro no país caribenho.

"A pretensão brasileira (na ONU) é antiga e legítima... Mas o argumento que tem sido usado de que a nossa participação na Minustah é para ter um assento é muito simplista", disse à BBC Brasil o embaixador brasileiro no Haiti, José Luiz Machado e Costa.

"O fato de o Brasil ter o comando geral do componente militar da missão dá uma projeção maior, muito grande, que nós não teríamos caso não tivéssemos esse comando", disse ele, que está no Haiti há 2 anos.

Mas, uma década depois, o sonho na ONU continua distante, e alguns questionam também os ganhos de tamanho esforço no Haiti.

O embaixador Luiz Augusto Castro Neves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), diz que a extensão do trabalho no Haiti não pode ser usada como exemplo de liderança em segurança internacional, "tal como o Brasil pretendia".

"A presença no Haiti não trouxe praticamente coisa alguma. Essa aspiração no Haiti estava ligada no contexto que o Brasil aspirava ser eleito como membro permanente do Conselho", disse ele.

"Foi uma atuação relevante para nós num cenário regional, mas com seus limites. Usar o Haiti como um pré-requisito para conseguir esse prestígio não é algo que seja viável, factível. É limitado o alcance disso".


 

Nova ordem


O Brasil defende a ampliação do Conselho para refletir a nova ordem mundial e acredita que sua condição de gigante regional lhe dá o direito de tornar-se um membro permanente - com direito a veto.

Mas a reforma ainda está longe de acontecer.

Há oposição de Estados Unidos, China e Rússia - estes dois últimos, aliados do Brasil no bloco Brics de países emergentes, ao lado também de África do Sul e Índia.

Os Estados Unidos, por exemplo, declararam apoio ao projeto indiano por uma vaga permanente na ONU e, apesar de grande expectativa em Brasília, não deram o mesmo suporte à demanda brasileira, que se arrasta há décadas.

"A razão que motivou o governo Lula a rapidamente decidir essa participação com essa intensidade foi associada à estratégia irrealista da reforma da ONU", disse o professor Eduardo Viola, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

"A ideia que o Conselho seria reformado era bem utópico. Em algum momento isso vai acontecer, mas era claro que não ia acontecer na década passada. E era essa a motivação".


Prestígio


Há, no entanto, ganhos em outras frentes. O Brasil expandiu sua atuação em missões da ONU na última década, especialmente na África.

Um exemplo é a República Democrática do Congo. O general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz, que liderou as tropas da ONU no Haiti entre 2007 e 2009, comanda hoje as tropas da entidade na nação africana.

A própria manutenção do comando do braço militar da Minustah é vista como sinal de prestígio brasileiro.

"O reconhecimento de que o papel do Brasil tem sido importante é o fato de que os sucessivos comandantes das tropas da ONU no país têm sido brasileiros. Isso é pouco habitual", disse o embaixador brasileiro na ONU, Antonio Patriota, em entrevista recente à BBC.

Houve, ainda, outro fator nesta década que teria influenciado como o Brasil é visto no exterior: a troca de presidente aqui.

Sob Dilma Rousseff, analistas apontam para um recuo da política externa, devido a uma atenção maior a questões internas, como a economia, o que teria deixado temas internacionais em segundo plano.

Lula abraçava publicamente bandeiras voltadas para a projeção do país no exterior, como a reforma do Conselho. Já Dilma, segundo observadores, tem aversão aos detalhes dos rituais diplomáticos.

"A motivação era equivocada, mas a experiência de ter participado (da Minustah) foi muito boa. Porque rompeu um isolamento provinciano do Brasil, que não tinha participado de nenhuma operação de paz de larga escala no mundo", disse Viola, da UnB.

"O Brasil passou a ser visto como um país responsável e isso é um ganho diplomático. Mas, mesmo nisso, o país estava atrasado", disse ele.



 

Adeus, 'bon bagay'?


O Haiti teve tudo menos sossego na última década.

Depois de ter estado à beira da guerra civil em 2004, o país voltou às manchetes em 2010 ao ser atingido por um terremoto que destruiu a capital e deixou mais de 200 mil mortos.

Em seguida, foi atingido por uma epidemia de cólera que matou cerca de 8 mil pessoas, cujo surto acredita-se ter sido iniciado em um campo de soldados nepaleses da ONU, o que gerou revolta local.

Depois, em 2012, veio o furacão Sandy, que matou mais de 50 pessoas e deixou milhares de desabrigados.

Houve, ainda, a alegação de que soldados uruguaios da força da ONU teriam abusado de um adolescente haitiano, o que engrossou o questionamento à presença da missão no país.

Muitos haitianos querem a saída completa dos soldados, inclusive os "bon bagay" - expressão em crioulo haitiano para "gente boa", usada com frequência para se referir aos militares brasileiros.

Patriota reconheceu que "dez anos é um período longo" e que planos na entidade apontam para uma redução gradual a um contingente mínimo até 2016.

Oficialmente, nenhuma data foi estipulada, mas alguns países já começam a retirar seus homens.

O Uruguai já anunciou sua saída completa do Haiti, e o Brasil também está reduzindo gradualmente seu contingente, mas não determinou prazos para uma retirada total.