quarta-feira, 10 de setembro de 2014

"Por que o Brics não impõe sanções à compra de armamentos israelenses? Se o Brics não agir, acabará se tornando irrelevante no futuro", diz Prashad

O EI nasceu da guerra ilegal dos EUA no Iraque em 2003', diz historiador
Vijay Prashad, da Universidade de Beirute, diz que o Estado Islâmico nasceu da al-Qaeda do Iraque e cobra de grupos como o Brics contribuição para a resolução de conflitos que atingem o Oriente Médio
Florência Costa florencia.costa@brasileconomico.com.br
Um plano para eliminar o Estado Islâmico (EI) será revelado hoje à noite pelo presidente americano Barack Obama, véspera do aniversário dos 13 anos do maior ataque terrorista da história dos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Um dos mais argutos especialistas em Oriente Médio, que acompanha com lupa o fortalecimento do EI, o historiador Vijay Prashad é chefe da cadeira Edward Said da Universidade Americana de Beirute, no Líbano, batizada assim em homenagem, a um dos mais importantes intelectuais do mundo, autor do clássico “Orientalismo”, uma das maiores referências na academia para estudos pós-coloniais. Autor de 15 livros _ o último deles lançado em 2013, “The Poorer Nations: A Possible History of the Global South” (“As nações pobres: uma história possível do Sul Global”) _ Prashad alertou em dezembro do ano passado para o perigo do EI. Ele cobra de grupos como o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que saia da inércia e contribua com a resolução de conflitos como os que atingem o Oriente Médio hoje.
Para um estudioso do Oriente Médio como o sr. foi uma surpresa “repentina” a ascensão de um grupo como o Estado Islâmico?
Em 2012 e em 2013 eu acompanhei o Estado Islâmico (EI) do Iraque e sua cria, o Jabhat al-Nusra (Grupo de Apoio) bem de perto, enquanto eles expandiam de seu reduto de ação a partir do Norte do Iraque para a Síria. O EI nasceu da al-Qaeda do Iraque, o grupo criado na sequência da destruição americana do estado do Iraque em 2003. O fundador original da al-Qaeda do Iraque, Abu Musab al-Zarqawi, tinha duas características. Ele era brutalmente sectário (anti-xiita em primeiro lugar) e muito violento (decapitações e carros bombas eram a sua especialidade). Até Osama bin Laden teve que precavê-lo por ser muito violento e sectário. Mas al-Zarqawi estabeleceu o tom do grupo. A al-Qaeda do Iraque teve um grande papel no caos de 2006-07. A Guerra civil na Síria permitiu ao EI mostrar sua presença lá e tirar vantagem do vácuo existente no Norte daquele país para conquistar a cidade de Raqqa, ameaçar Aleppo e dominar Azaz. O líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, rebatizou seu grupo para incluir a Grande Síria. Ele subordinou todos os guerreiros jihadistas ao EI. Muitos grupos se uniram ao Estado Islâmico , que emergiu como o grupo mais mortal do Norte da Síria. O EI dominou Raqqa, uma grande cidade da Síria, por mais de um ano. Em dezembro de 2013 o grupo conquistou Fallujah e Ramadi, no Iraque. Naquela época, eu já advertia para o desafio que seria o Estado Islâmico. Eles seguiram adiante atacando o Norte do Iraque e atingiram Mosul ( a segunda maior cidade do país) no dia 10 de junho. Em fevereiro, dois diplomatas europeus me disseram em Beirute que meus escritos sobre o EI tinham um tom de exagero. Eu acho que eles queriam acreditar nisso para poderem continuar sua narrativa da Guerra Síria, mostrando que o governo de Bashar al-Assad era autoritário e que os rebeldes significavam a democracia. Mas a verdade era bem diferente dessa narrativa e as coisas ficariam bem piores.
É certo afirmar que os americanos decidiram bombardear o EI apenas depois que o grupo se apresentou como uma ameaça a seus interesses, como o petróleo no Curdistão?

O governo iraquiano vinha pedindo ajuda dos EUA para combater o Estado Islâmico desde dezembro de 2013, quando o grupo sunita tomou as cidades de Ramadi e Fallujah. Mas os EUA estavam azedos com o então primeiro-ministro iraquiano Nuri al-Maliki. As eleições estavam no horizonte. Eu suspeitei que os americanos não ajudaram os iraquianos na época porque eles não queriam que al-Maliki tivesse um grande sucesso antes das eleições de abril.O exército do Iraque já havia sido destruído em 2003. O país não tem Forças Aéreas. De dezembro de 2013 a junho de 2014, com EI se fortalecendo e ganhando confiança no Iraque, os EUA não fizeram nada.Somente quando eles ameaçaram o território autônomo do Curdistão, os mais próximos aliados americanos na região, é que os EUA decidiram agir. Isso foi por causa dos interesses. Foi o petróleo? Pode ser. Mas também pode ser apenas a necessidade geo-estratégica de proteger Arbil, capital do Curdistão (onde há muitos escritórios de empresas internacionais), de evitar que a cidade fosse tomada.
Há quem argumente que o Estado Islâmico é uma bandeira falsa que está sendo usada pelo Ocidente para dividir o Iraque em três partes e para continuar sua intervenção na região. O sr. concorda com isso?

Não. O EI tem sua própria dinâmica. O grupo cresceu a partir da Guerra do Iraque em 2003 e da dispersão da al-Qaeda depois de 2001. Um analista da CIA certa vez me disse que se você bate no mercúrio com um martelo, espalha para tudo quanto é lado. Isso é o que o ataque de 2001 dos EUA ao Afeganistão fez. Espalhou o mercúrio para o Iraque, principalmente depois de os EUA terem destruído o Estado e o Exército do país. Os americanos entregaram o norte do Iraque para a al-Qaeda, assim como a guerra civil na Síria entregou o norte do país para o EI. Essas são dinâmicas complexas e muito difíceis de controlar.
O que o sr. acha da observação feita por Hillary Clinton de que o EI não teria se tornado uma força se os EUA tivessem ajudado os rebeldes sírios a tempo?
Há uma sabedoria convencional segundo a qual se os EUA tivessem armado o Exercito de Libertação da Síria e atacado Damasco com a aviação, o EI e suas crias não teriam tido tempo de crescer.Esse é um fato difícil de desconsiderar. Pode ter acontecido dessa forma, com certeza.De outro lado, se os EUA tivessem bombardeado a Síria, teria destruído aquele estado também, como fez no Iraque. Então, os ataques e a ajuda dos EUA teriam ajudado a fortalecer o Exército de Libertação da Síria, mas não necessariamente isso teria provocado o enfraquecimento dos jihadistas. O que Hillary Clinton tenta sugerir é que o EI é uma consequência da Guerra Síria. Mas isso não é verdade. O EI é um problema iraquiano, com raízes na Guerra illegal do Iraque que ela apoiou. A força do EI está no Iraque, onde conquistou territórios substanciais desde 2013.
Apenas alguns anos atrás, com a Primavera Árabe no ar, a região estava à beira da mudança. Hoje parece estar afundando em uma crise profunda. O que deu errado?
A Primavera Árabe foi um grande acontecimento na vida da Grande Arábia. Mas sempre teve impulsos contrarevolucionários. A Arábia Saudita sempre pressionou com o seu poder. Foi a pressão da Arábia Saudita com a dos EUA que parou a dinâmica no Egito. Foi a Arábia Saudita, de novo, que estabeleceu os movimento dos piores elementos na Síria.Foi a tensão saudita contra o Irã que evitou a formação de um governo estável no Iraque. O que deu de errado foi que a balança de poder, com a ação do bloco dos contrarevolucionários (Arábia Saudita, EUA e Israel) impedindo a região de se mover e de manter os pilares da estabilidade.
O bombardeio da Faixa de Gaza por Israel evocou condenação no mundo todo ,mas os países árabes parecem ter abandonado os palestinos. Por q ue houve essa indiferença?

Os estados árabes e a liderança palestina encontram-se em uma posição enfraquecida. De quem falamos quando nos referimos a países árabes? A Síria está reduzida a um pequeno Estado que só consegue fazer pronunciamentos. O Iraque sofre do mesmo problema. O governo é fraco e não tem respeito moral. A Líbia mal funciona como Estado, com uma guerra civil que ameaça esfacela-la. O Egito está sob a influência da Arábia Saudita, promovendo sua própria guera contra a Irmandade Muçulmana. O Hamas é o grupo palestino da Irmandade Muçulmana. O enfraquecimento do grupo deixa os sauditas felizes. Essa é a tragédia do mundo árabe hoje. Está totalmente dominado pelas ambições e política sauditas. Ninguém fala pelos países árabes hoje. Antes, a Liga Árabe era dividida entre o bloco saudita e os outros (Síria, Egito, Líbia e Iraque). Mas hoje, o segundo bloco foi destruído. O vencedor é a Arábia Saudita. O rei saudita apenas condenou os bombardeios de palestinos, referindo-se a crimes de guerra. Mas fez isso apenas para não ser amaldiçoado pela população árabe. Ele não deu nenhum passo concreto para punir Israel, nenhuma promessa de boicote, nada.
No meio do caos, guerras, derramamento de sangue e estados falidos, há algum motivo para ter esperança de uma paz duradoura na região?

Há vislumbres de esperança. Na Tunísia, depois de dois anos do diálogo político, o povo faz a sua própria Constituição. Não é perfeita, mas é um documento de compromisso importante. É a primeira constituição escrita por um Estado Árabe através do voto universal. A ascensão das milícias curdas e sua habilidade de atingir o Estado Islâmico é um sinal muito positivo. Espero que isso inspire outros grupos no Iraque a lutar contra o EI. Síria, Egito, Iraque e Líbia estão quebrados. Na Síria e na Líbia, o Ocidente destruiu suas instituições estatais. Na Síria, o Ocidente teve papel parcial em promover a guerra civil. No Egito, o Ocidente colaborou com os sauditas para permitir o retorno ao poder dos militares através do general Abdul Al- Sassi. Tudo isso nos diz que o Ocidente permanece uma autoridade apesar de grupos como o Brics terem se fortalecido. É impressionante como o Brics não teve interesse na região. Por que o Brics não pressionou por uma solução regional na Síria ou agora por uma solução regional com relação ao Estado Islâmico? O Brics, se quiser quebrar a unipolaridade dos EUA, precisa ter uma agenda mais agressiva. Por exemplo, sobre o EI, eles precisam dizer à Turquia para fechar suas fronteiras para os jihadistas que continuam a cruzar por ali para chegar aos EUA. Eles precisam dizer à Arábia Saudita e aos seus aliados do Golfo para parar de financiar o EI e seus grupos associados. O Brics tem poder econômico e poderia fazer isso. Se a União Europeia pode dizer que produtos israelenses feitos em assentamento ilegais estão proibidos de entrar nos países do bloco, por que o Brics não pode se unir a essa sanção? Por que o Brics não impõe sanções à compra de armamentos israelenses? Se o Brics não agir, acabará se tornando irrelevante no futuro.