terça-feira, 29 de julho de 2014

Israel vai insistir em levar a Palestina à exaustão’, diz professor da FGV

Salem Nasser nega a tese de legítima defesa de Israel e questiona: o que é mais grave, o terrorismo ou o crime de guerra?

Redação Brasil Econômico redacao@brasileconomico.com.br
Salem Nasser, professor de Direito Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), nega a tese de legítima defesa de Israel e reafirma o desequilíbrio de forças no sangrento conflito que assola a Faixa de Gaza e que já deixou mais de mil mortos em 20 dias, a grande maioria palestinos e civis. Especialista em assuntos do Oriente Médio, Nasser questiona a definição de grupo terrorista dada ao Hamas. Com um olho treinado para a região, ele afirma que um cessar-fogo parece muito improvável. Segundo ele, há uma mudança estratégica nos objetivos de Israel. Assim como em 2006 contra o Hezbollah, no Líbano, o que começou como uma resposta pontual a mísseis, estaria se transformando em uma campanha pelo desarmamento dos grupos palestinos. O professor da FGV acredita que o conflito terá longa duração porque há uma pressão clara da opinião pública israelense para que a ofensiva se mantenha até a destruição total dos túneis que ligam as regiões. Segundo ele, Israel começa a temer os ataques do Hamas, mas vai insistir em levar a Palestina à exaustão.
Israel afirma que age em legítima defesa. O que você diz sobre isso?
Em direito internacional, para que se configure a legítima defesa, é preciso estar diante de um ataque militar por parte de outro Estado. Um primeiro problema com essa tese israelense é que o princípio só se aplica se você for atacado primeiro. O governo de Israel sempre fala como se estivesse quieto no seu canto e, de repente, fosse injustamente atacado por foguetes palestinos. Isso não se sustenta. Antes dos primeiros foguetes já havia uma ofensiva contra a Cisjordânia.
Mas desta vez argumentam que palestinos iniciaram os ataques...
Não cabe falar em um ataque inicial palestino quando, de fato, a Faixa de Gaza está sob constante violência israelense, por força de um bloqueio econômico e territorial que impõe todo tipo de sofrimento. Embora Israel não esteja presente de modo contínuo na Faixa, com tropas estacionadas ali, Gaza é, em grande medida, um território controlado por Israel e isto impõe uma outra dificuldade para a configuração da legítima defesa.
Então, qual é o real peso dos foguetes do Hamas nisso tudo?
A melhor maneira de falar sobre isso é imaginar que os foguetes não existem. Imaginemos que os palestinos não tivessem qualquer instrumento de resposta militar. Os israelenses desfariam então o bloqueio? Eles encerrariam a ocupação do território palestino e desfariam os assentamentos? As respostas são todas negativas. O fato é que se não houvesse algum tipo capacidade de resistência militar palestina a esta altura Israel já teria completado seu projeto de incorporação dos territórios remanescentes e retirado dali o essencial da população palestina. É apenas compreensível que, assim como Israel considera necessário continuar a ser uma superpotência militar, também os palestinos, efetivamente ameaçados, tentem desenvolver recursos de força militar.
Como explicar a definição de grupo terrorista dada ao Hamas?
O termo terrorismo é um poderoso instrumento retórico de deslegitimação do inimigo. Se perguntarmos a quem o aplica qual é a definição de terrorismo, a luz do direito internacional ou nacional, que fundamenta a acusação, perceberemos que as pessoas são incapazes de responder. Outra coisa importante a ser lembrada é que, provavelmente, todos os ocupantes coloniais que existiram se referiam aos que ousavam se insurgir como terroristas ou equivalentes. Assim os franceses viam os argelinos, os ingleses viam os indianos e etc. Não é estranho que os israelenses façam isso agora. E, por fim, ainda que pudéssemos admitir que atos palestinos sejam qualificados como terroristas, cabe a pergunta: os atos israelenses não são também atos terroristas? O que é mais grave, o terrorismo ou o crime de guerra, lançar foguetes que ao final de quase vinte dias provocam a morte de duas pessoas ou bombardear massivamente civis?
Israel diz que faz avisos prévios sobre os bombardeios e e acusa o Hamas de utilizar escudos humanos. Como você vê isso?
O aviso prévio é um instrumento de propaganda muito poderoso e até cabeças razoavelmente aptas se deixam convencer. Mas é preciso parar um pouco para refletir. Dizer que você avisou que ia destruir a casa de alguém com uma bomba e que isso é suficiente para justificar a destruição é simplesmente inaceitável e imoral. Quanto mais avisar que vai bombardear hospitais e escolas cheios de feridos e refugiados. Sobre os escudos humanos, isso é outra peça de propaganda inserida em um banho racista evidente “Eles não têm amor à vida como nós temos”, quantas vezes não ouvimos isso nos últimos anos? Os tenentes desse racismo deveriam, antes de falar, olhar uma entre as tantas cenas de sofrimento nas ruas de Gaza. E mesmo que déssemos algum crédito às teses, como explicar que a força desses grupos está justamente no apoio popular de que gozam? 
Apesar das perdas palestinas, o Hamas já recusou propostas de cessar-fogo. Por quê?
Uma coisa que não vem sendo dita sobre as propostas de cessar-fogo e sobre a recusa da primeira delas, quando Israel pareceu disposto a aceitar, tem a ver com o cessar fogo negociado no final dos ataques de 2012 contra Gaza. Os grupos palestinos têm insistido que Israel não cumpriu o combinado na época, o que incluía o fim do bloqueio imposto à Faixa. Dessa vez, os grupos armados não estavam dispostos a simplesmente aceitar uma proposta sem garantias de fim do bloqueio, necessidade mais urgente dos palestinos.
Apesar da trégua, dizem que um cessar-fogo não está próximo. Qual é a sua avaliação?

Quando há um consenso de que não há condições para um cessar-fogo consistente, surgem propostas de trégua humanitária na esperança de que se prolonguem sem que as condições sejam atendidas. Essa trégua do último final de semana só aconteceu porque ambas as partes precisaram. Os palestinos para o resgate dos corpos e Israel porque subestimou a intensidade dos ataques do Hamas. Mas algo duradouro é realmente improvável. Os palestinos só param com o fim do bloqueio e os israelenses conseguiram que os norte-americanos assinassem embaixo do discurso de desarmamento dos grupos palestinos, assim como em 2006 contra o Hezbollah, no Líbano, mesmo sabendo que este é um objetivo impossível. Além disso, há uma pressão clara da opinião pública israelense para que a ofensiva se mantenha até a destruição total dos túneis que ligam as regiões. Na minha leitura, ambos vivem um impasse. Israel começa a temer os ataques do Hamas, mas vai insistir em levar a Palestina à exaustão, e os palestinos serão pressionados pelo número de vítimas que só aumentam.
Já é possível avaliar o saldo desse conflito para a região?
Apesar do sofrimento enorme e das perdas impostas aos palestinos pela ação militar israelense, o fato é que os resultados desta campanha podem vir a se somar ao que aconteceu em 2006 no Líbano, 2008, 2009 e agora 2012 em Gaza, e serem colocados na conta de derrotas relativas de Israel. Estão sendo reveladas falhas nos serviços de inteligência israelense, que não souberam julgar a capacidades dos grupos palestinos. A capacidade de dissuasão dos grupos armados aumentou nos últimos anos na medida em que eles hoje podem alcançar qualquer parte de Israel com seus foguetes e, inclusive, lhe impor algum tipo de paralisia, como o que aconteceu com o seu aeroporto principal. Essa campanha revela que, quando forçados ao combate direto, no terreno, os soldados israelenses se saem menos bem e que os grupos armados palestinos desenvolveram meios e estão dispostos a levar a batalha ao território israelense, não só por ar, com os foguetes, mas também por terra. Isso tudo é cheio de implicações fundamentais para o futuro da região.