terça-feira, 12 de agosto de 2014

Argentina e as finanças globais

Em 30 de Julho ultimo a Argentina foi impedida, por um juiz federal norte-americano, de realizar pagamentos acordados com seus credores

Rogerio Studart rogerio.studart@brasileconomico.com.br
As consequências desta decisão para aquela nação podem ser graves, mas o episódio tem tudo para deixar profundas sequelas para a frágil economia global. Os últimos capítulos da novela envolvendo a inadimplência técnica da Argentina tornaram-se tão populares na mídia internacional que muitos se esquecem de olhar o roteiro da trama que se arrastra desde os anos 90.
Assim como outros países da região, nossos vizinhos foram um laboratório de ideias econômicas brilhantes — que se mostraram afinal desastrosas. No fim dos anos 80, o governo argentino adotou uma série de medidas liberalizantes (comércio, finanças domésticas etc.), além de um regime de câmbio fixo — conhecido como convertibilidad. Nos primeiros anos desse experimento, o país recebeu não só os aplausos da comunidade econômica internacional, mas também vultosos fluxos de capital — que tiveram como contrapartida um rápido crescimento do passivo externo do país.
Já em 1994, com a crise mexicana, o sistema mostrava vulnerabilidade; em 1998, com a crise asiática, o balanço de pagamentos levou a economia argentina a um “loop” de retração e deterioração dos fundamentos econômicos — e concomitante saída de recursos para o exterior. Esse processo culminou com uma significativa crise de balanço de pagamentos e uma crise econômica que provocou um desemprego de mais de 20% e um aumento tristemente espetacular da pobreza no país.
Depois de inadimplir em 2001, a Argentina logrou reestruturar sua dívida soberana através de sucessivos acordos — em 2005 e 2010. Uma maioria de credores, detentora de 92,4% do total da dívida, aceitou a troca por títulos, com valores menores ao valor de face, e indexados ao crescimento do PIB argentino. Tendo em vista que a Argentina teve crescimento positivo, e elevado até 2008, a renegociação demonstrou-se um bom negócio para as duas partes. Mas uma minoria dos credores não aceitou os termos do acordo.
Cerca de 1% da dívida total terminou nas mãos de fundos, que a compraram por uma mínima fração do valor de face, esperando algum dia lucros excepcionais caso tivessem ganho de causa. Um deles, o NML, que pertence ao fundo liderado pelo bilionário Paul Singer, comprou cerca de US$ 832 milhões de dívida argentina pela bagatela de US$ 48 milhões em 2008. Por serem fundos extremamente especulativos, passaram a ser conhecidos, com toda razão, como “fundos abutres”.
A recente decisão do juiz federal Thomas Griesa, que deu ganho de causa a esses fundos, determinou que a Argentina pagasse um total de US$ 1,5 bilhão mantido pelos fundos querelantes, possibilitando que os demais investidores que não participaram da reestruturação (detentores de 6,6% da dívida original) recebam outros US$ 15 bilhões. Para evitar a inadimplência técnica, o governo argentino realizou o depósito do pagamento semianual da dívida reestruturada, no valor de US$ 539 milhões no Bank of New York Mellon. Como o juiz impugnou o pagamento, no dia 30 de Julho, a Argentina tornou-se tecnicamente inadimplente.
A decisão criou problemas potencialmente graves — tanto para a Argentina quanto para as finanças internacionais. Para a Argentina provocou uma encruzilhada: pagar seria um rompimento com a cláusula da reestruturação — a cláusula “Rufo” — que impede que o governo ofereça condições distintas para os investidores. Isso abriria um flanco para que os demais credores demandassem o imediato pagamento da dívida reestruturada — o que representaria, alguns calculam, mais de quatro vezes o total de reservas internacionais daquele país.
Não pagar também é declarar-se inadimplente, cortando seus já limitados laços com a comunidade financeira internacional — o que, adicionalmente, pode gerar fugas de capital como ocorreu na crise de 2001, e outras consequências muito negativas para uma economia que já passa momentos difíceis.
Para o mercado financeiro internacional, o precedente é igualmente ruim — por pelo menos por duas razões. Por um lado, de cara, no futuro toda e qualquer reestruturação da dívida soberana, já por definição complicada, poderá ser dificultada pela existência de uma minoria, mesmo uma pequena, que não queira aderir ao acordo. Por outro, existe a suspeita de que o impasse atual tenha sido arquitetado pelos fundos especulativos — que estariam, com a decisão, ganhando fortunas nos mercados de derivativos que “apostam” contra a inadimplência argentina, o chamado mercado de credit default swaps.
Se isto for verdade, o incentivo de não aderir ao acordo pode ser irresistível — especialmente porque existe sempre a possibilidade de se obter ganhos milionários com a reabertura das negociações a qualquer momento ao longo do pagamento da dívida reestruturada.
Como temos observado na resolução da crise da “periferia” europeia, as crises de dívida soberana passaram a ser parte do cotidiano do mundo das finanças internacionais. Neste momento, portanto, o precedente criado pela decisão do juiz norte-americano é simplesmente um perigo com consequências ainda desconhecidas. Que, pelo menos desta vez, não tenha de ser o povo argentino a pagar pelas maluquices do mundo das finanças globais.