terça-feira, 14 de janeiro de 2014


Ponto Final - A angústia de Kalashnikov

14/01/14 10:45 | Gabriel de Sales 

Mikhail Kalashnikov, o herói soviético criador do fuzil AK-47, arma de assalto mais fabricada no mundo, que morreu na antevéspera do Natal, aos 94 anos, sofreu nos últimos anos de vida com o temor de ser culpado pelas mortes causadas pelo seu invento, como revela, na edição de ontem, o jornal russo Izvestia. “Minha dor espiritual é insuportável

De vez em quando me faço a mesma pergunta que não posso responder: ‘Se meu rifle terminou com a vida de tantas pessoas, pode ser que eu... seja culpado por

O projetista do exército da então União Soviética, que nunca foi recompensado materialmente pela arma que projetou, começou a trabalhar no AK-47 quando ouviu, perto do final da Segunda Guerra Mundial, reclamações de soldados sobre a inferioridade do armamento leve do Exército Vermelho em relação ao dos alemães. A nova arma só começou a ser produzida regulamente em 1947, e, curiosamente, passou a ser usada muito mais intensamente fora das fronteiras soviéticas que dentro.

Leve e fácil de operar, pode ser manejada por pessoas fisicamente frágeis, inclusive, mulheres e adolescentes. Foi o que aconteceu na Guerra do Vietnã, onde teve papel importante na luta da guerrilha sul-vietnamita que, com o apoio do Vietnã do Norte, conseguiu derrotar as tropas norte-americanas e unificar o país.

"Se o nome de Samuel Colt e seu revólver são associados ao século 19, então a arma do século 20 sem dúvida é o Kalashnikov", compara o analista de Defesa da BBC, Jonathan Marcus.

Diante de tanto sucesso, não demorou para que o fuzil passasse a ser copiado. Estima-se que, desde 1947, cerca de 100 milhões de unidades do AK-47 foram produzidas, espalhando-se, inicialmente, em países alinhados com o bloco soviético e, depois, por todos os cantos do mundo. Para desespero de seu criador, tornou-se uma das armas preferidas também de narcotraficantes latino-americanos e criminosos organizados em outros redutos.

"Criei essa arma para defender minha pátria", afirmou Kalashnikov na comemoração de seus 90 anos, em 2009. "Não é agradável ver que todo tipo de criminoso atira com minhas armas", acrescentou.

No mesmo dia em que foi divulgada a carta em que ele expôs suas angústias, a porta-voz do consórcio Kalashnikov, a empresa que leva o nome do criador do AK-47 , maior produtora russa de armas automáticas de combate e de espingardas esportivas, anuncia que está perto de começar a fornecer esse tipo de armamento aos Estados Unidos. "A empresa poderá vender com ajuda da Russian Weapon Company, o seu dealer exclusivo, até 200 mil armas por ano", anunciou a assessora Elena Filatova. O negócio deverá formalizado na Shot Show 2014, que se realiza de hoje até o próximo dia 17 em Las Vegas.

Em um país extremamente liberal internamente na comercialização de armas e, até por isso, sobressaltado por frequentes massacres praticados por jovens e que no plano externo não hesita em usar drones, os aviões não-tripulados, contra populações civis indefesas, a chegada das armas russas será um forte ingrediente a mais no quadro de violência. Neste caso, sim, a angústia de Kalashnikov seria plenamente justificada.