sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


Nigéria não precisa de Goodluck

O presidente Goodluck Jonathan, candidato à reeleição, tentou se apropriar do lema da campanha para trazer de volta as 276 meninas raptadas, lançando o cínico #BringBackOurGoodluck2015

Florência Costaflorencia.costa@brasileconomico.com.br

Conquistar a reeleição é tudo o que quer Goodluck Jonathan, o presidente da Nigéria, país mais rico da África. Mesmo que tenha de passar por cima de dois mil cadáveres, colocando uma venda nos olhos para não enxergar as imagens de satélites que comprovam a destruição da cidade de Baga, e para não ver as meninas-bomba de 10 anos de idade arregimentadas pelo grupo extremista islamita Boko Haram.

Só há uma coisa pior do que o mundo ter esquecido a tragédia nigeriana, enquanto a morte de 17 pessoas na França, por terroristas islâmicos, atraía 50 líderes e representantes de vários países a Paris no último fim de semana: foi o fato de o próprio presidente nigeriano ter ignorado o maior banho de sangue já provocado pelo Boko Haram em seu país.

O massacre de Baga e Doron Baga, cidades na costa do lago Chade, no estado de Borno (nordeste da Nigéria), aconteceu a partir de 3 de janeiro e durou alguns dias. Ainda não se sabe ao certo a quantidade exata, mas há um imenso número de vítimas. A Anistia Internacional, que divulgou fotos de satélites mostrando a destruição de mais de 3 mil construções, diz que duas mil pessoas foram massacradas, inclusive uma mulher que estava em trabalho de parto: metade do bebê já havia saído quando ela foi morta a tiros.

Mas fontes do exército tentaram minimizar a tragédia, diminuindo o número de vítimas para 150, embora as testemunhas contem que caminhavam quilômetros sobre corpos. Os habitantes de Baga já estavam traumatizados com um massacre de 200 pessoas cometido pelo próprio exército que deveria protegê-los, em abril de 2013, após um ataque do Boko Haram.

Para quem acompanha o comportamento de Goodluck Jonathan há mais tempo, isso não é uma surpresa. Quando o mundo se chocou com o Boko Haram, em abril do ano passado, por causa do rapto das 276 meninas em uma escola de Chibok, vilarejo no estado de Borno, Jonathan simplesmente tentou esconder as garotas debaixo do tapete. Ele demorou três semanas para fazer algum pronunciamento sobre o assunto. Uma campanha para trazê-las de volta (#BringBackOurGirls), fez imenso sucesso na internet, a ponto de a primeira-dama americana, Michele Obama ter aderido.

A partir daí, o presidente, já de olho nas urnas deste ano, passou a concentrar seus esforços em uma massiva campanha publicitária. o governo nigeriano contratou a Levick, empresa de relações públicas americana, para tentar reverter os prejuízos à sua imagem, divulgando o blá-blá-blá de que a prioridade do governo era resgatá-las. Quem acreditou nisso? E para completar, o presidente tentou se apropriar, agora no processo eleitoral, do lema da campanha pelo resgate das meninas, lançando o seu hashtag incrivelmente cínico: #BringBackOurGoodluck2015.

Nove meses já se passaram desde o rapto e a maioria das garotas (219) está desaparecida. As que escaparam contam que as moças, entre 15 e 18 anos, foram vendidas como escravas sexuais, ou foram casadas à força. As que se recusavam a se converter ao islamismo eram estupradas e torturadas. O Boko Haram faz campanha sistemática contra a educação feminina, podando o país de profissionais mulheres no futuro. Na língua Hausa, do norte da Nigéria, Boko Haram quer dizer “a educação ocidental é um pecado”.

A um mês do pleito, marcado para 14 de fevereiro, Jonathan, um cristão do sul do país, enfrenta Muhammadu Buhari, um muçulmano do norte, ex-governante na época do regime militar, que chegou ao fim em 1999, quando o Partido Democrático do Povo de Jonathan assumiu o poder, vencendo todas as disputas eleitorais desde então.

A Nigéria, incluída no acrônimo Mint (ao qual pertencem ainda o México, a Indonésia e a Turquia), é também o maior produtor de petróleo e o mais populoso país de seu continente, com mais de 170 milhões de habitantes. Apesar da extensão dos massacres, o assunto não domina a campanha eleitoral, mesmo com a maior parte da população condenando os ataques do Boko Haram, inclusive a sua parte islâmica: o país é dividido entre cristãos, no Sul, e muçulmanos, no Norte.

Mas o perigo do grupo jihadista não é pequeno: nascido em 2002, ele começou a atuar de forma mais violenta a partir de 2009. Não pretende apenas impor a lei islâmica da Sharia. Sua ação visa também desestabilizar o Estado, espalhando o pavor. Poucos acreditam que as eleições servirão para alguma melhora no pavoroso cenário nigeriano. O próprio pleito está sob perigo de ser deslegitimaste-o pela ação do Boko Haram no Norte, onde poucos vão conseguir votar.

Os extremistas islamitas também representam um perigo para outros países da região, como o Níger, o Chad e Camarões. Desde agosto, o Boko Haram reivindica um "califado" nas áreas conquistadas, imitando o Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Por essas e outras, a Nigéria figura na lista dos países mais instáveis do mundo: está entre os dez piores da África, segundo a consultoria Maplecroft. Apesar de sua preocupação com a imagem, o presidente Goodluck Jonathan demonstrou toda a sua insensibilidade após o derramamento de sangue em Baga: foi fotografado dançando dois dias depois, na festa de casamento de sua filha. O Boko Haram cresce em meio à pobreza em uma área predominantemente muçulmana, onde nigerianos marginalizados estão cada vez mais abertos às influências do discurso radical islamita. Afinal, do Estado nigeriano e do mundo, eles não esperam mais nada.