sexta-feira, 13 de abril de 2012

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O papel da China na democratização de Mianmar

Por Eric Vanden Bussche
Há menos de um ano, Mianmar (antiga Birmânia), no Sudeste Asiático, era um dos países mais isolados do mundo, governado com mão-de-ferro por um regime autoritário desde 1962 e sofrendo há décadas com as sanções econômicas impostas pelo Ocidente. Em meados de 2011, porém, o presidente birmanês Thein Sein _considerado até então um fantoche dos militares_ surpreendeu o mundo ao dar início a um rápido processo de democratização, libertando mais de 200 presos políticos, relaxando a censura aos meios de comunicação e abrindo o diálogo com a líder da oposição, a prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. A visita da secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, a Mianmar, em dezembro de 2011, e as eleições legislativas no início deste mês (vencidas com folga pelo partido de Aung San Suu Kyi) representaram passos significativos na veloz transição de um regime opressivo a uma democracia.
Pode soar estranho, mas a China foi a grande responsável por essa recente democratização de Mianmar. Durante as últimas duas décadas, as sanções econômicas impostas pelo Ocidente corroeram a economia do país, ampliando a dependência de Mianmar na China. Entretanto, os crescentes investimentos chineses no país passaram a inquietar o regime birmanês, preocupado que o aprofundamento dos laços permitirá à China exercer considerável influência nos rumos do país.
O processo de democratização deve ser enxergado nesse contexto. Por meio das reformas, o governo birmanês espera ensaiar uma aproximação com o Ocidente para poder frear o avanço da China na região. Não foi coincidência que a abertura política no ano passado tenha coincidido com a suspensão de um projeto chinês para a construção de uma hidrelétrica no rio Irrawaddy, a principal via fluvial do país.
As relações entre a China e Mianmar sempre foram marcadas por profundas tensões. Há séculos os chineses cobiçam os recursos minerais de seu vizinho e se esforçam para expandir a sua esfera de influência sobre o país.
Embora a dinastia Qing (1644-1911) considerasse Mianmar um reino tributário, os imperadores em Pequim tiveram dificuldade em subjugá-lo. A corte Qing também enxergava a região fronteiriça entre a sua província de Yunnan e Mianmar _rica em minérios_ como uma das mais instáveis de seu império por possuir um terreno geográfico acidentado e ser habitada por poderosas tribos de diversas etnias que conseguiam escapar ao controle do estado. Não foi por acaso que o desgastante processo de delimitação de fronteiras entre Mianmar e a China, que teve início no final do século 19, perdurou durante 70 anos até ser finalmente resolvido em 1960.
Os atritos aumentaram durante a Guerra Fria. Quando os comunistas conquistaram o poder, em 1949, alguns batalhões do exército nacionalista de Chiang Kai-shek se refugiaram no norte de Mianmar e, com o apoio da CIA, lançaram uma tentativa fracassada de reconquista da China no início da década de 50. Isso foi um dos motivos que levaram Pequim a forjar alianças com diversos povos no norte de Mianmar, suprindo-os com armamentos para garantir os seus interesses na região. Essa iniciativa obviamente incomodou o regime birmanês, pois esses povos reivindicavam maior autonomia e se encontravam em conflito com o exército birmanês.
O dedo de Pequim em Mianmar era fonte constante de disputas politicas entre a junta militar que governava o país, pois não havia um consenso sobre como lidar com o peso da China no Sudeste Asiático. A questão ganhou maior relevância a partir dos anos 90. Além das sanções do Ocidente, o regime chinês consolidou o comércio na fronteira e ampliou os seus investimentos na extração de minérios e recursos energéticos no país. O projeto chinês de construção da usina hidrelétrica no Rio Irrawaddy, suspensa em setembro do ano passado pelo presidente birmanês, Thein Sein, ilustra as ambições chinesas na região. Além dos prejuízos ambientais e comerciais aos habitantes na bacia do Rio Irrawaddy, 90% da energia produzida seria destinada à Província chinesa de Yunnan.
O jornalista Bertil Lintner, especialista em Sudeste Asiático, assinala que desde o início dos anos 90, uma ampla gama de produtos chineses baratos, de rádios a cigarros, passou a inundar o país, ocasionando uma balança comercial claramente favorável à China. Ele mostra que, em 2009, as exportações chinesas ao Mianmar alcançaram US$ 2,3 bilhões, mas as importações não passaram de míseros US$ 646 milhões. Lintner adverte que o aumento vertiginoso de comerciantes chineses em cidades como Mandalay durante os últimos anos e dos projetos de infraestrutura financiados por Pequim passaram a nutrir um forte sentimento nacionalista entre a população e agravaram as tensões entre as facções da junta militar. Talvez a abertura política e a aproximação com o Ocidente sirvam para atenuar os ânimos.
Os chineses estão reagindo às manobras do regime birmanês com cautela. Após a suspensão da construção da usina hidrelétrica no rio Irrawaddy, as empresas chinesas responsáveis por projetos de infraestrutura na região entenderam a necessidade de melhorar a imagem de seu país perante a população local e passaram a compensar de forma mais generosa as comunidades afetadas por suas obras. Pequim, embora preocupada com as reformas, adotou uma posição favorável às mudanças em curso.
Logo após as eleições parlamentares, a agência de notícias oficial Xinhua enfatizou que a China enxergava com bons olhos o fim das sanções econômicas. O website do governo da Província de Yunnan, que faz fronteira com Mianmar, assinalou que as eleições parlamentares do início de abril servirão para fortalecer a confiança mútua nas relações bilaterais, mesmo que ocorra uma troca do governo no futuro próximo.
Entretanto os alertas de acadêmicos e jornalistas chineses para uma maior influência dos EUA e Europa no país revelam uma ansiedade de Pequim com a nova realidade no Mianmar, que certamente ocasionará mudanças nas relações sino-americanas e na geopolítica da região.

Eric Vanden Bussche é especialista em China moderna e contemporânea da Universidade Stanford (EUA). Possui mais de uma década de experiência na China. Foi professor visitante de relações Brasil-China na Universidade de Pequim e pesquisador do Instituto de História Moderna da Academia Sinica, em Taiwan. Suas áreas de pesquisa incluem nacionalismo, questões étnicas e delimitação de fronteiras da China. Sua coluna é publicada às sextas-feiras.