segunda-feira, 23 de junho de 2014


Argentina no vale tudo dos EUA

Se não saciar a fome dos “abutres’,a Argentina oficialmente dará um calote nos credores, forçada pela justiça americana

Heloísa Villela heloisa.vilela@brasileconomico.com.br

A  Suprema Corte dos Estados Unidos deu de ombros ao governo da Argentina. E mais do que isso. Se julgou no direito de determinar que o lucro dos chamados fundos “abutre” tem precedência sobre decisões soberanas de um governo interessado em garantir a estabilidade econômica e o bem estar da população que o elegeu. E alguém poderia se surpreender com isso? No país que assaltou os cofres públicos para salvar a pele das instituições financeiras que levaram o mundo ao colapso de 2008-2009, nada mais coerente do que, mais uma vez, privilegiar o direito ao lucro, premiar a ganância.

Sim, porque aqui se trata, mais do que nada, da ganância de uma minoria. Como bem lembrou a embaixadora argentina em Washington, Cecilia Nahón, em artigo publicado na revista “Forbes”, o país passou por uma das piores crises econômicas de sua história em 2001-2002. A dívida pública chegou a representar 166% do PIB, o desemprego bateu em 21% e a receita clássica do FMI, calcada na privatização e no arrocho, não resolveu o problema. Ao contrário, o agravou. Hoje, quem passa apertado com a mesma velha fórmula é a Grécia. Mas o que fez a Argentina para sair do buraco? Entre outras medidas, renegociou a dívida externa impagável, contraída pela ditadura militar. A lógica, que convenceu 93% dos credores, é simples: com a reestruturação da dívida, a economia volta a crescer e os pagamentos, mesmo que em menor escala, ficam garantidos.

Foi o que aconteceu. O desconto de 70% do valor de face dos títulos da dívida externa argentina tornou possível garantir um fluxo de pagamentos e desonerar os cofres públicos, abrindo espaço para o crescimento. Desde então, a economia do país manteve crescimento constante. Mas no processo de reestruturação, os chamados fundos de investimento “abutre” apostaram no direito à ganância. Depois da moratória, compraram títulos da dívida argentina por uma ninharia, 10 centavos de dólar, e entraram na justiça exigindo o pagamento do valor total de face. Pois foram esses “abutres” que saíram ganhando, agora, após mais de uma década de briga nos tribunais dos Estados Unidos.

A Suprema Corte se recusou a ouvir o apelo do governo da Argentina. Portanto, ficou valendo a decisão do juiz federal de Nova York, Thomas Griesa, que dá prazo até o dia 30 de junho, uma semana a partir desta segunda-feira, para que Buenos Aires pague US$ 907 milhões dos US$ 1,3 bilhão que “deve” aos “abutres”, se quiser continuar usando o sistema financeiro americano. E é nos bancos dos Estados Unidos que a Argentina paga os juros da dívida renegociada. Agora, se não pagar a esses fundos, não poderá pagar o que deve aos que toparam a renegociação. Em outras palavras, se não saciar a fome desses “abutres”, a Argentina oficialmente dará um calote nos credores, forçada pela justiça americana. O juiz foi ainda um pouco mais longe. Também deu direito aos fundos de levantar os bens da Argentina no exterior para saber quanto e aonde está o dinheiro do país e assim reclamar parte dele.

A presidente Cristina de Kirshner já avisou que não se submeterá ao que chamou de extorsão. E calculou: se pagar o valor de face que os urubus exigem, dará a eles um lucro de 1.608%. “Nem o crime organizado”, disse ela, para lucrar assim. A Casa Rosada tem outros planos. Vai seguir as ordens da justiça americana na aparência dando o calote técnico. Mas ao mesmo tempo, vai tentar trocar os títulos atuais por novos, com a mesma estrutura, os mesmos prazos e valores, mas com local de pagamento diferente. A mudança de endereço para pagamento afastaria a Argentina dos bancos e da justiça americanos. Uma manobra que a própria Argentina já adotou no passado e a Grécia adotou recentemente. Na última sexta-feira, o mesmo juiz Griesa, que deu ganho de causa aos “abutres”, declarou que a mudança de jurisdição financeira da dívida argentina é ilegal.

A atitude da Suprema Corte dos Estados Unidos não é apenas um desrespeito a um país soberano. Mantendo a decisão do juiz federal de Nova York, ela abriu um precedente perigoso, que pode tornar impossível qualquer renegociação de dívida soberana que envolva o sistema financeiro americano. Cristina Kirshner já fala em enviar advogados a Nova York para negociar com os “abutres”. Mas sucumbir agora à chantagem jurídica de Tio Sam é um risco gigantesco. Ao pagar os “abutres”, ela pode se ver diante de uma enxurrada de processos dos demais credores que toparam a reestruturação da dívida no passado e vão se sentir prejudicados. Se esses fundos podem receber o valor total, por que não os outros?

A queda de braço diz mais a respeito do estado da justiça, nos Estados Unidos, do que das intenções do governo de Buenos Aires. A mesma Suprema Corte que, ao se recusar a ouvir os argumentos da Argentina, deu ganho de causa aos “abutres”, também decidiu, nos últimos anos, dar liberdade total ao poder econômico para ditar as regras do jogo político no país. Em 2010, os juízes supremos decidiram que o governo não tem o direito de restringir a independência política das corporações, associações e sindicatos. Trocando em miúdos, abriu a temporada do vale tudo no financiamento das campanhas políticas. A partir daquele momento, o limite da participação das grandes empresas nas campanhas eleitorais foi abolido.

É bom não esquecer, também, que essa mesma Suprema Corte decidiu, no ano 2000, suspender a recontagem dos votos da Flórida na eleição presidencial, o que garantiu a eleição de George W. Bush com apenas um voto de vantagem sobre Al Gore no colégio eleitoral.