segunda-feira, 2 de junho de 2014

Doutrina Obama
Para reduzir a ação direta dos EUA, Obama quer combater terrorismo treinando países aliados
Heloísa Villela heloisa.vilela@brasileconomico.com.br
Mestre, como poucos, da retórica, a capacidade singular de proferir bons discursos, recheados de esperança para uma população que já andava exausta das guerras e mentiras do governo George W. Bush, garantiu ao Presidente Barack Obama o resultado positivo nas duas eleições (claro que ele contou, também, com milhões de dólares arrecadados junto a grandes empresas e principalmente ao mercado financeiro). Agora, entrando na fase em que historicamente se define o legado de um presidente norte-americano, Obama decidiu estabelecer o que, aparentemente, é uma nova doutrina para a política externa.
A doutrina Obama diz, na superfície, que já chega de chafurdar na areia movediça dos conflitos alheios. Nada mais de se deixar arrastar para guerras distantes. Na semana que passou ele fez duas promessas referentes a nova diretriz: as tropas que ainda estão no Afeganistão voltarão para casa até o fim de 2016. Claro que um pequeno contingente sempre fica para trás.
Uma força mínima, caracterizada como de apoio e treinamento. Mas nada de operações nas ruas e de centenas de soldados estacionados no país. Obama sabe que o cansaço público com as guerras do Iraque e do Afeganistão é gigantesco. E ainda tem que lidar com a volta para casa de milhares de soldados mutilados, sem habilidades específicas para produzir na sociedade civil e problemas mentais sérios.
Em discurso durante a formatura dos cadetes de West Point, o presidente explicou o que seria, então, a doutrina Obama. Primeiro, enalteceu o poderio militar do país, a supremacia que mantém no mundo e que é hoje insuperável. “A América nunca foi tão forte como agora quando comparada ao resto do mundo”, disse Obama. Em seguida acrescentou que as forças armadas são a espinha dorsal da liderança do país no cenário internacional. “Mas a ação militar norte-americana não pode ser o único, e nem o primeiro, componente da nossa liderança em todas as situações. Só porque temos o melhor martelo, isso não significa que todos os problemas são como pregos”, afirmou.
E como dar continuidade a tão propagada “guerra contra o terrorismo” sem se imiscuir em conflitos alheios? Incentivando os demais países do planeta a combaterem também esses inimigos. Para tanto, Obama anunciou que vai pedir ao Congresso a criação de um fundo de US$ 5 bilhões para financiar a capacitação profissional e material de forças aliadas.
Na visão bem cínica de quem não vê a menor chance do complexo industrial-militar sair perdendo, agora que as guerras do Iraque e do Afeganistão vão finalmente ganhando um quase ponto final, é preciso vender armas em outros lugares. E esse dinheiro vai fazer justamente isso. Vai passar na mão de outros países como forma indireta de financiar a compra de armas e equipamentos militares norte-americanos.
Os Estados Unidos são o único país do mundo que dividem o planeta em comandos militares, como se estivessem diante do antigo jogo “War” cujo vencedor é aquele que consegue dominar todas as regiões do mundo. Para Lawrence Wilkersen, a doutrina Obama não tem nada de novo. O coronel norte-americano Wilkersen foi chefe de gabinete do general Colin Powell quando ele assumiu o Departamento de Estado na primeira administração George W. Bush. Para quem se alistou aos 20 anos para lutar no Vietnã e sempre votou no partido republicano, a experiência junto ao poder completou uma trajetória de mudança pouco comum no país.
Pelo telefone, Lawrence Wilkersen disse que o anúncio de Obama não muda em nada a direção que o país adotou depois da Segunda Guerra Mundial. A fabricação de conflitos e guerras localizadas da guerra fria. Sem a menor hesitação, ele afirmou que a política externa dos Estados Unidos não é traçada no Departamento de Estado e sim no Pentágono. São os interesses da indústria armamentista e do estado de segurança nacional criado desde os anos 50 que ditam as regras à diplomacia.
Lawrence Wilkerson ficou indignado com a famosa apresentação de Colin Powell nas Nações Unidas, quando tentou provar ao mundo que Saddam Hussein era um perigo pois possuía armas de destruição em massa. Mas aquele não foi o pior momento da participação do coronel no governo Bush. Quando as fotos da tortura em Abu Ghraib vieram à tona, para ele foi o fim. O país chegava, de fato, ao fundo do poço. Republicano, ele votou em Obama. E não se conforma que o atual governo não tenha investigado e processado a administração Bush por crimes contra a humanidade.
De Washington, Wilkerson voltou para a vida acadêmica. Formado em filosofia e literatura, hoje ele dá aula em uma universidade e discute com os alunos os processos de decisão política do país a partir da Segunda Guerra Mundial. Bastante pessimista com relação ao futuro, ele diz que mostra aos alunos como a democracia norte-americana se transformou em um estado de segurança nacional. A criação da CIA, das operações secretas, do FBI, do Pentágono. “Muitos dos meus alunos eram descrentes”, diz ele. Mas os documentos revelados por Julian Assange, do Wikileaks, e o vazamento de informações ainda mais bombásticas, de Edward Snowden, reforçaram o conteúdo do curso. O problema é a reação dos alunos depois de que tomam conhecimento de tudo isso.
“E daí? Isso sempre aconteceu e vai continuar acontecendo”, dizem eles. O professor Wilkersen não se conforma. Ele disse que acabou de ler, esses dias, o livro do jornalista Glenn Greenwald, escolhido por Snowden para divulgar o conteúdo das informações a respeito da espionagem e das escutas generalizadas do aparato norte-americano. Na opinião de Wilkersen, o livro é muito otimista. O autor acredita que as revelações vão sacudir o povo nos Estados Unidos e provocar grandes mudanças.
“Infelizmente, não acredito”, disse. Na opinião do ex-braço direito de Colin Powell, as mudanças, nos Estados Unidos, são sempre precedidas de violência. Só acontecem com sangue nas ruas. Ele espera que não seja necessário um confronto tão dramático. Mas ao mesmo tempo, não vê muito outra forma de reverter o monstro criado nas últimas seis décadas. Um monstro que se auto consome, que destrói o planeta, que não tem a menor compaixão pela vida. Mas tem nas mãos todas as armas para destruí-la.