terça-feira, 3 de junho de 2014

Brasil e EUA estão na encruzilhada do processo de desenvolvimento inclusivo

Ao contrário do que ocorreu nos EUA, o Brasil inicia o ciclo virtuoso da redução da desigualdade depois de décadas de baixíssimos investimentos - em infraestrutura, em capital fixo e em gente

Rogerio Studart rogerio.studart@brasileconomico.com.br
Para que se entenda a relação entre a distribuição de renda e o desempenho econômico no médio prazo, recomendo um documentário: o “Inequality for all” , de Robert B. Reich, baseado em seu livro “After shock” . Reich foi Secretário de Trabalho de Bill Clinton, e muito antes do livro de Thomas Piketty se tornar um best-seller, tem sido uma das vozes mais contundentes, além de importante ativista sobre as consequências do aumento da desigualdade nos Estados Unidos. Até pouco tempo, seus pontos de vista eram ridicularizados, e suas propostas tratadas com ceticismo ou simples desdém. Hoje, ele é parte de um debate importante neste país — debate que, creio, pode lançar luz sobre alguns dos desafios atuais do Brasil.
Uma descrição muito sucinta da tese de Reich é a seguinte. Os EUA no pós-guerra passaram por um círculo virtuoso de redução da desigualdade, ampliação da classe média, de surgimento de um mercado de consumo de massa, e de democratização do crédito e do acesso à educação — especialmente a profissional e universitária. Nos anos 70, iniciou-se um achatamento dos salários da classe trabalhadora, uma das pernas importantes do citado círculo virtuoso. O processo somente não desmontou a economia por dois fatores: o ingresso das mulheres, e especialmente das jovens mães, no mercado de trabalho, e o aumento das horas trabalhadas. Eles permitiram que o consumo das famílias, já então mais de 60 % da demanda agregada da economia americana, se mantivesse em alta.
O crescente hiato de renda, riqueza e oportunidades poderia ter sido permeado por maior tensão. Porém, a partir dos anos 80, a expansão acelerada do acesso ao crédito deu um alívio. Mas não sem contradições: foi afinal a bolha especulativa sobre ativos financeiros e mobiliários que permitiu a utilização das propriedades imobiliárias para financiamento do consumo através de expansão espetacular da dívida familiar. Enquanto isto, o ascendente poder político do pessoal dos andares superiores promovia, através de fortes lobbies, uma redução relativa da tributação dos ricos — o que terminara por reduzir a capacidade do Estado em financiar programas importantes, inclusive o de acesso à educação. Com acesso reduzido à educação, a força de trabalho americana passa a perder produtividade e competitividade em um mundo em que economias industriais, como a Alemanha e Japão, reemergem após anos de recuperação da devastação da guerra, e enquanto outras emergem com o apoio do governo e do capital americano (como por exemplo a Coreia do Sul).
Enquanto a ciranda financeira estava rodando, os problemas levantados por Reich eram relevados. Mas cresciam assustadoramente o endividamento das famílias, o déficit comercial e a dívida com o resto do mundo. A crise financeira manda tudo isso para o espaço, e se houve melhoras importantes na economia, os americanos continuam com alto desemprego, uma demanda que se arrasta, baixa produtividade e baixa competitividade. A saída tem de ser pelo lado do investimento, mas é duro alimentar o espírito animal dos investidores em um quadro como esse.
Como essa experiência pode ajudar a entender o Brasil de hoje? Convivemos, há séculos, com alta exclusão econômica e social. Assim como nos EUA, no pós-guerra tivemos períodos de redução da desigualdade, que coincidiu com o fortalecimento das instituições democráticas. Mas as forças do retrocesso sempre prevaleceram. Foi o caso do golpe de 1964, que, como sabemos, iniciou um movimento redistributivista “para cima”, através basicamente do achatamento dos salários dos trabalhadores - movimento que somente se reverteu 40 anos depois! De fato, mesmo no retorno à democracia, e a despeito do aumento do poder e do ativismo popular, a desigualdade somente aumentou ao longo do traumático ajuste estrutural e da hiperinflação dos anos 80, e mesmo na primeira década de pleno regime democrático. Como a experiência recente americana indica, poder econômico e poder político andam de mãos dadas. No Brasil, anos de profunda desigualdade acirraram a captura política, a corrupção e o rentismo econômico.
Em meados dos anos 90, se abre para nós uma nova janela de oportunidades para enfrentar o monstro da desigualdade. A estabilidade de preços e a reconquista da capacidade de planejamento e administração de políticas foram importantes, mas somente um passo para ultrapassarmos as décadas perdidas pela exclusão política, econômica e social. Outros avanços cruciais foram a política de aumento do salário mínimo, os programas de inclusão econômica e social, o maior acesso ao crédito e a e democratização do acesso à educação — especialmente a profissional e universitária. Com eles, iniciamos no começo do século nosso ciclo virtuoso de redução da desigualdade, mesmo que gradual, e aumento das oportunidades, cujos frutos somente agora estão se sentindo.
Mas o processo gerou de maneira muito acelerada gargalos, econômicos e políticos, e desafios impressionantes. E a comparação com os Estados Unidos outra vez ajuda: ao contrário do que aqui ocorreu, o Brasil inicia o ciclo virtuoso da redução da desigualdade depois de décadas de baixíssimos investimentos — em infraestrutura, em capital fixo e em gente. E enquanto o crescimento inclusivo nos EUA ocorreu em um período de economia quase fechada (já que as demais economias industriais estavam ainda se recuperando da guerra), o Brasil reinicia seu processo quando a competição comercial externa está mais forte do que nunca.
No âmbito político, e talvez pelo medo inconsciente de que o processo civilizatório no Brasil geraria excessivas resistências, nesta última década não foram desmontadas algumas “instituições perversas” herdadas pelo Brasil desigual — como o fisiologismo e uma postura cartorial por parte das nossas elites políticas. Essa falha tem custos: a população, e especialmente as classes médias que perderam espaço relativo, ressentem-se do crescente hiato entre infraestrutura e serviços, e de um sistema ainda habitado por políticos fisiológicos e rentistas, mais preocupados com seus ganhos de curto prazo do que com os ganhos de longo prazo dos eleitores a que deveriam servir. É, portanto, normal o aumento da tensão social nesses momentos.
Apesar dos distintos desníveis nos patamares de desenvolvimento, Estados Unidos e Brasil passam por encruzilhadas similares: a de produzir ou dar seguimento a um processo de desenvolvimento inclusivo, enfrentando resistências profundas. Em nenhum dos casos há risco de termos um retrocesso pela força, porque nossas instituições democráticas são profundamente sólidas, e nossa cidadania sempre atenta — o que no Brasil é uma conquista relativamente recente. O risco que temos é que a opinião pública caia no discurso fácil do atraso, disfarçado de uma defesa da modernidade e da eficiência econômica — o discurso que no Brasil aponta para a insustentabilidade do aumento do salário dos trabalhadores, reclama uma “reflexão” sobre os gastos sociais, e desacredita ou assume como secundária qualquer debate sobre reforma política, tachada de irrealista.
Que os Estados Unidos superarão essa armadilha da desigualdade, eu tenho poucas dúvidas: afinal eles o fizeram a partir da traumática crise de 1929, ao redefinir estrategicamente as instituições econômicas, políticas e sociais no sentido de consolidar os direitos e os ganhos da maioria trabalhadora. Oxalá no Brasil tenhamos, desta vez, a coragem de ir em frente.