Retrato da fome
O relatório da FAO
diz que nas regiões em desenvolvimento, a parcela dos subnutridos caiu de 23,3%
em 1990 para 12,9% em 2014; a América Latina é um dos destaques positivos
Florência Costaflorencia.costa@brasileconomico.com.br
Quem já viu criança esquálida, osso e pele, não esquece nunca mais.
Subnutridas, elas parecem bebês que começaram a andar antes do tempo. Esse é um
dos primeiros choques para um estrangeiro quando chega à Índia, país com o
maior número de pessoas subnutridas: dos 795 milhões no mundo, 780 milhões
vivem em países em desenvolvimento, sendo que a Índia tem 194,6 milhões, ou uma
em cada quatro pessoas no planeta.
O assunto voltou ao noticiário nesta semana com a divulgação de um
estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO), que apontou uma redução de 216 milhões de pessoas que passam fome no
mundo. A América Latina e o Caribe são a região que mais avançou para erradicar
a fome ao reduzir a mais da metade a porcentagem e o número total de pessoas
subnutridas. Mas a fome ainda castiga, e muito, principalmente no Sul da Ásia,
onde fica a Índia, e na África Subsaariana.
“Didi, didi, khana ke lie” (“Irmã mais velha, irmã mais velha, me dê
alguma comida”), pedem as crianças indianas imitando com as mãos o gesto de
colocar comida na boca. É preciso explicar que faz parte do hábito local chamar
desconhecidos de “tio(a)”, “pai”, ou “irmão(ã)”. Isso porque a instituição mais
forte do país é a família. As miseráveis, ossudas, fazem plantão nas ruas das
grandes cidades e correm na direção dos carros(que estão sempre com janelas
fechadas) quando acende o sinal vermelho. Os dedos dos pedintes deslizam no
vidro e deixam suas marcas. O conselho que mais se ouve dos indianos é: não dê
esmola, seu carro vai ser cercado por uma enxame de mendigos.
A Índia, país conhecido mundialmente pela espiritualidade, reverencia ferozmente a deusa da riqueza, que no panteão dos milhões de divindades hindus é Lakshmi. Em outubro, durante o Diwali, o Festival das Luzes, os indianos enfeitam o caminho de suas portas com lamparinas para ajudar Lakshmi a encontrar as suas casas e entrar, abençoando-os e trazendo prosperidade, uma palavrinha mágica na Índia e na China.
Em 1991, a Índia fez a sua grande reforma liberalizante, liderada pelo tímido economista, educado em Oxford, Manmohan Singh, então ministro das Finanças (mais tarde primeiro-ministro da Índia). Na época, ele citou Victor Hugo para anunciar a abertura da economia: “Ninguém pode impedir uma ideia cujo momento (de ser concretizada) chegou”. A revista “The Economist” comparava a Índia — até então vista apenas como a sucursal da miséria humana no planeta — a um “tigre desenjaulado”.
Depois de crescer a uma média de 6% na década de 90, o PIB acelerou a uma média de 9% entre 2003 e 2008, o segundo crescimento mais rápido depois da China. Era a “Índia Incrível”, como dizia o lema do governo. O tom de euforia começou a desvanescer em 2011, com a Índia se defendendo e prometendo colocar em prática o crescimento inclusivo. Como diz o premiado escritor Aravind Adiga, autor de “Tigre Branco”, existem duas Índias: a dos magros e a dos ricos. Quando o filme “Quem quer ser milionário?” ganhou o Oscar em 2008, o cineasta Danny Boyle, britânico, foi muito criticado pela classe média indiana que o acusava de pretender humilhar o país, de ter exibido apenas a parte magra e feia da Índia, as favelas de Mumbai, onde a história de passa. O maior símbolo da pobreza indiana é a favela de Dharavi que o visitante vê do avião ao chegar: ela fica do lado do aeroporto. Mumbai concentra a contradição indiana, onde está o Banco Central e a Bolsa de Valores, uma das residências mais caras do mundo, a do empresário Mukesh Ambani, dono do império Reliance, e onde está a maior favela da Índia, com seus esgotos a céu aberto.
O relatório da FAO diz que, nas regiões em desenvolvimento como um todo, a parcela dos subnutridos decresceu de 23,3% em 1990 para 12,9% agora. E destaca como exemplos positivos algumas regiões, como América Latina. A prevalência da subnutrição na América Latina caiu de 14,7% entre 1990 e 1992 para 5,5% entre 2014 e 2016, segundo os períodos estabelecidos nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
A mídia indiana, que gosta de comparar seu país com a vizinha e rival China, lamentava esta semana o fato de seu país ter sido passado para trás pela China em termos de progresso na redução da miséria. Em 1990, a Índia abrigava um número menor de subnutridos do que a China: 210 milhões contra 289 milhões. Mas os dois gigantes tinham um proporção semelhante de subnutridos naquela época: cerca de 23% de suas populações, devido à diferença no tamanho de suas populações. Hoje, a Índia tem mais subnutridos, cerca de 194 milhões, ou 15% da sua população, do que a China, com seus 133 milhões, ou 9% da população. A Índia não conseguiu atingir a Meta do Desenvolvimento do Milênio, de reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção de pessoas que sofrem com a fome. Brasil e China alcançaram.
“O crescimento econômico é a chave para se reduzir a subnutrição, mas tem que ser inclusivo”, diz o relatório “The State of Food Insecurity in the World- 2015”, da FAO. Constatou-se que melhorar a produtividade e a renda das famílias de pequenos agricultores é fundamental. E que os programas de proteção social não podem ser abandonados. O debate sobre crescimento inclusivo, levantado de forma tão precisa há anos pelo economista indiano e Prêmio Nobel Amartya Sen, não sai de pauta.
A Índia, país conhecido mundialmente pela espiritualidade, reverencia ferozmente a deusa da riqueza, que no panteão dos milhões de divindades hindus é Lakshmi. Em outubro, durante o Diwali, o Festival das Luzes, os indianos enfeitam o caminho de suas portas com lamparinas para ajudar Lakshmi a encontrar as suas casas e entrar, abençoando-os e trazendo prosperidade, uma palavrinha mágica na Índia e na China.
Em 1991, a Índia fez a sua grande reforma liberalizante, liderada pelo tímido economista, educado em Oxford, Manmohan Singh, então ministro das Finanças (mais tarde primeiro-ministro da Índia). Na época, ele citou Victor Hugo para anunciar a abertura da economia: “Ninguém pode impedir uma ideia cujo momento (de ser concretizada) chegou”. A revista “The Economist” comparava a Índia — até então vista apenas como a sucursal da miséria humana no planeta — a um “tigre desenjaulado”.
Depois de crescer a uma média de 6% na década de 90, o PIB acelerou a uma média de 9% entre 2003 e 2008, o segundo crescimento mais rápido depois da China. Era a “Índia Incrível”, como dizia o lema do governo. O tom de euforia começou a desvanescer em 2011, com a Índia se defendendo e prometendo colocar em prática o crescimento inclusivo. Como diz o premiado escritor Aravind Adiga, autor de “Tigre Branco”, existem duas Índias: a dos magros e a dos ricos. Quando o filme “Quem quer ser milionário?” ganhou o Oscar em 2008, o cineasta Danny Boyle, britânico, foi muito criticado pela classe média indiana que o acusava de pretender humilhar o país, de ter exibido apenas a parte magra e feia da Índia, as favelas de Mumbai, onde a história de passa. O maior símbolo da pobreza indiana é a favela de Dharavi que o visitante vê do avião ao chegar: ela fica do lado do aeroporto. Mumbai concentra a contradição indiana, onde está o Banco Central e a Bolsa de Valores, uma das residências mais caras do mundo, a do empresário Mukesh Ambani, dono do império Reliance, e onde está a maior favela da Índia, com seus esgotos a céu aberto.
O relatório da FAO diz que, nas regiões em desenvolvimento como um todo, a parcela dos subnutridos decresceu de 23,3% em 1990 para 12,9% agora. E destaca como exemplos positivos algumas regiões, como América Latina. A prevalência da subnutrição na América Latina caiu de 14,7% entre 1990 e 1992 para 5,5% entre 2014 e 2016, segundo os períodos estabelecidos nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
A mídia indiana, que gosta de comparar seu país com a vizinha e rival China, lamentava esta semana o fato de seu país ter sido passado para trás pela China em termos de progresso na redução da miséria. Em 1990, a Índia abrigava um número menor de subnutridos do que a China: 210 milhões contra 289 milhões. Mas os dois gigantes tinham um proporção semelhante de subnutridos naquela época: cerca de 23% de suas populações, devido à diferença no tamanho de suas populações. Hoje, a Índia tem mais subnutridos, cerca de 194 milhões, ou 15% da sua população, do que a China, com seus 133 milhões, ou 9% da população. A Índia não conseguiu atingir a Meta do Desenvolvimento do Milênio, de reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção de pessoas que sofrem com a fome. Brasil e China alcançaram.
“O crescimento econômico é a chave para se reduzir a subnutrição, mas tem que ser inclusivo”, diz o relatório “The State of Food Insecurity in the World- 2015”, da FAO. Constatou-se que melhorar a produtividade e a renda das famílias de pequenos agricultores é fundamental. E que os programas de proteção social não podem ser abandonados. O debate sobre crescimento inclusivo, levantado de forma tão precisa há anos pelo economista indiano e Prêmio Nobel Amartya Sen, não sai de pauta.