O teflon russo
O teflon do
presidente russo Vladimir Putin é poderoso. Nada de ruim gruda em sua imagem
para a maior parte da população
Florência
Costaflorencia.costa@brasileconomico.com.br
No mês passado, o canal de TV britânico “BBC” transmitiu uma reportagem
mostrando, com surpresa, que após 15 anos no poder, como presidente ou como
primeiro-ministro, Putin tem uma popularidade de mais de 80%, quase o dobro da
do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Popular em casa, ele é cada vez
mais tipo como um inimigo no Ocidente. A maioria dos russos não só apóia Putin
— mesmo com a sua fama de autoritário, centralizador, perseguidor implacável de
críticos — como o consome: produtos com sua imagem fazem muito sucesso.
A “BBC” entrevistou um dono de uma fábrica de chocolates que reconhecia
que as coisas andavam ruins — com uma inflação que já bate em 17% , desemprego
aumentando e economia em recessão. Ele explicava à repórter que a culpa não era
de Putin, mas do Ocidente, que impôs as sanções econômicas para punir Moscou
por sua participação no conflito da Ucrânia, que o Kremlin insiste em negar.
Roman Eldarkhanov, dono da Confael, criou “chocolates políticos”: pirulitos
modelados com as cabeças de chefes de Estado ocidentais, como Obama e Angela
Merkel, prontos para serem devorados pelos russos. Uma caixa de bombom da
Confael tem a imagem de Putin, de óculos escuros, bem ao estilo machão que o
presidente gosta de cultivar (pelo menos as embalagens não foram ilustradas com
uma daquelas fotos de Putin sem camisa pescando...).
Imagens de Putin como homem de ação — cavalgando ou derrubando oponentes
com golpes de judô — são parte de sua receita de popularidade. A mensagem é: o
chefe do Kremlin é valente, corajoso e capaz de impedir que a Rússia seja
atacada por inimigos de fora. O país tem uma longa história de agressões
externas e de vida dura, como na Segunda Guerra Mundial, ainda muita viva na
memória coletiva. Hoje, a expansão da Otan, a aliança militar dos países
ocidentais, na direção do Leste Europeu, é o fantasma que assombra os russos.
Um cenário econômico adverso causado por inimigos externos conseguiu, ao
contrário do que se imagina, fortalecer o mandatário do Kremlin. Alex Kliment,
diretor de Pesquisas do Eurasia Group, constata que “o governo conseguiu com
sucesso relacionar a dureza econômica como sendo o preço do patriotismo na
Rússia”. O caráter autoritário do presidente não assusta a grande massa. Uma
das medidas mais duras que ele tomou foi acabar com as eleições diretas para
governadores regionais, que passaram a ser nomeados pelo Kremlin.
Alguns jovens entrevistados pela “BBC” explicavam que gostam de Putin
porque os russos não se sentem mais envergonhados como na era caótica e
humilhante do governo de Boris Yeltsin, logo após a queda da URSS em 1991. Sob
Yeltsin, os famosos oligarcas russos ganharam asas, arrebatando empresas
durante o processo de privatização. Ironicamente, foi o próprio Yeltsin (cuja
fama mundial era a de um beberrão), que pariu a criatura Putin. Quando ele
amargava o auge de sua fraqueza política, precisava de um primeiro-ministro
durão, que simbolizasse a ordem. Nada melhor do que o chefe da FSB (o serviço
secreto que substituiu o temido KGB).
Putin foi eleito presidente pela primeira vez em março de 2000. Em
meados dos anos 90, com os russos exaustos dos preços nas nuvens após anos de
escassez soviética, uma piada que corria entre os correspondentes que cobriam
Moscou era de que qualquer um que concorresse a presidente com o slogan “ordem
e salsicha” venceria facilmente. Na década seguinte, Putin entregou os dois
para os russos. O preço foi enfraquecer a democracia, com a perseguição de
oponentes, incluindo jornalistas, presos ou mortos de forma suspeita.
Lev Gudkov, diretor do Centro Levada, instituto de pesquisa que já foi
investigado várias vezes, atribui a onda anti-ocidental entre os russos à
máquina de propaganda do Kremlin, que aproveita ao máximo o controle estatal sobre
a televisão. Mas a questão vai além disso. A História explica esse
comportamento russo, que começou a ser germinado durante a formação de um
Estado centralizado, após o fim do domínio mongol no século 15. No livro “Os
Russos” (Editora Contexto, 2010), o professor de História Contemporânea da USP
Angelo Segrillo explica que antes disso (do século 9 ao 15), havia um Estado
descentralizado que não conseguia resistir às ameaças militares externas. A
crença, entre os russos, passou a ser de que a centralização e um Estado com
pulso forte é a receita do sucesso.
A “BBC” mostrou ainda, na reportagem sobre a popularidade de Putin, uma
loja de roupas com vestidos de seda estampados com o rosto do governante da
Rússia moderna que mais encarnou a figura autocrática dos czares, como Ivan IV,
o Terrível (1553-1584), Pedro I, o Grande (1682-1725), Catarina II, a Grande
(1762-1796). Se Putin for reeleito em 2018, poderá ficar no poder até 2024. O
czar do século 21 governaria, assim, por quase um quarto de século. Hoje os
russos o chamam de Putin, o Grande. Resta saber se com a economia definhando,
ele continuará com esse epíteto.