A vírgula letal
Ela
lhe é familiar, muito mais do que supõe o noticiário internacional, você nem a
nota, pois ela é apenas um adorno da notícia. Inconfundível, porém: aquele
carregador curvilíneo, que a distingue da maioria dos fuzis de assalto. A
vírgula letal.
A
AK-47, com a qual você se defronta com a mesma frequência com que assiste a
partidas de futebol, é mais conhecida como Kalash. O apelido carinhoso pegou
tanto que o jornal Le Monde noticiou, recentemente, que em Marseille a
rapaziada usa T-shirts impressas com ela (logo substituirá o ícone Che). O
verbo “kalacher” é sinônimo de estar enturmado numa gangue adolescente
prestigiosa.
Em
Moscou, no maior parquinho de diversões, Kalashs de plástico disputam com
ursinhos de pelúcia e Mickey Mouses a honra de brinde para o vencedor. Menos
divulgado, e mais sintomático, é o fato de vários meninos na África terem sido
batizados com este prenome: Kalash.
Sim,
ela é pop. Sim, é a máquina de matar mais eficaz na história da humanidade. Uma
arma que, às vésperas de seu 68 º aniversário, extermina um quarto de milhão de
pessoas por ano. Em toda sua modéstia tecnológica, barata e onipresente, ela é
a verdadeira arma de destruição em massa. Inventada em 1945 por um pacato
engenheiro militar, o tenente Mikhail Kalashnikov ( morto em dezembro de 2013)
, a ‘Avtomat Kalashnikov’ nasceu democrática, como uma arma do povo, para o
povo, capaz de f uncionar em quaisquer mãos: em ambientes gelados ( URSS),
úmidos ( como o Vietnã), desérticos ( regiões africanas e a Ásia Central),
incólume a chuva, lama ou deserto. Pode ser enterrada na areia por anos a fio,
desencavada, e mal precisa de limpeza para começar a disparar. Idem em
pântanos: ela sai da água como um anfíbio perfeito, tinindo para cumprir sua
tarefa. Há uma virtude proteica na Kalash que a torna a Número Um. Sua
incomparável resistência, facilidade de manejo e longevidade dão- lhe uma
olímpica superioridade.
Ser
simples tem suas vantagens. Transações ilícitas tem muito mais liquidez no
mercado. È assim que supostos grupos rebeldes obtém armas de fornecedores,
digamos, independentes, e casam à perfeição oferta e demanda. Nos anos 80, a
CIA comprou um bocado de AKs fabricadas na China, para equipar os mujahedin do
Afeganistão liderados por Osama Bin Laden ( então um aliado dos americanos) em
sua jihad contra a presença soviética no país.Levantamentos da Anistia Internacional
e da Oxfam afirmam que este comércio ilícito de armas é irreversível. A China ,
hoje ( como em tudo, aliás, vide bolsas Louis Vuitton),é a campeã de
fabricação.Foi só em 1956 que a Kalash delineou os contornos definitivos de sua
personalidade futura, a de artefato sob medida para o vale-tudo da barbárie —
quando Khrushchev despachou o Exército Vermelho para reprimir o levante
pró-democracia em Budapeste. Nos anos da Guerra Fria, ela se tornou o maior
presente da Rússia a seus afilhados ou apadrinhados, e grátis.
Em
termos de realpolitik, cada uma das superpotências passou a fornecer
sorrateiramente armas mortíferas convencionais a seus aliados. Este é o ponto
de inflexão, a gestação da nova persona que chegou às T-shirts: o fuzil de
assalto AK(dos 500 milhões de armas de fogo em todo o mundo, cerca de 100
milhões são da família Kalashnikov) era grátis, quando fornecido pela URSS.
Se
retrocedermos à história da Kalash, ela é um dos mais ambivalentes ícones:
inicialmente, foi sinônimo da luta do pequeno contra o grande, do oprimido
contra o opressor, de David contra Golias, para se transmutar, atualmente, no
emblema do genocídio, à disposição de psicopatas, fundamentalistas e tiranos,
onipresente nas matanças contemporâneas: Síria, Chechênia, Uganda, República
Centro-Africana, Iraque.
Décadas
atrás, a Kalash soava a Che Guevara e idealismo, aos intrépidos combatentes das
lutas de libertação terceiro-mundistas, à resistência popular. Está desenhada
na bandeira de Moçambique, após a vitória contra os colonialistas portugueses.
É o emblema do Timor Leste. Decora a bandeira do Hammas. A Kalash foi um dos
pontos de inflexão da vitória dos resilientes vietnamitas contra o maior
poderio militar do mundo, os EUA, na guerra do Vietnã.
AAKera,
e é, imprecisa, desengonçada, insegura para seu portador, e exatamente por isso
perfeita para o trabalho. Pois o X da questão, na guerra contemporânea, não é a
precisão, e sim a capacidade de destruição.
A
guerra do século XXI, muitos profetizam, será a crônica da morte já anunciada
em finais do XX: a proliferação ad infinitum de guerras locais, étnicas,
religiosas, sectárias, tribais, de confrontos exponencialmente mortíferos — é
neste solo propício que se edifica a globalização, inclusive dos interesses da
indústria bélica. Nos confrontos do século XXI, o simples, barato e disponível
ganha longe do caro e complicado. A arma ideal, paradoxalmente, é a mais a
simplória: tosca, barata, obstinadamente resiliente.
Em
calmaria, a AK é uma pechincha: US$ 10 ou US$ 15 dólares, ou um saco de milho.
Quando a carnificina começa, a lei da oferta e procura prospera, e ela se torna
mais cara.
Sua
imprecisão é perfeita neste novo teatro da guerra.Cada tiro é menos certeiro,
mas mais vale a quantidade de tiros abatendo mais gente, demandando mais armas
para abater os abatedores. O círculo virtuoso. Cliente morto, cliente posto. A
Kalash é o suprasumo do ideal igualitário, pois equivale quem mata e quem
morre: todos são dispensáveis, dos snipers dos esquadrões de extermínio às
inocentes vítimas civis.
Tão
poderosamente ubíqua é a Kalash que ela já penetrou, bem longe da selva e da
savana, em jantares elegantes de uma Park Avenue. Além de pop, a Kalash é cult
e chique. Um jantar politicamente correto da Park Avenue pode ser regado a
Vodka marca Kalash ( mais cara que a Stolichanaya Premium) e as mesas de canto
do anfitrião serem decoradas por luminárias Kalash do renomado designer
Philippe Starck (a base, estilizada, imita a arma), uma peça que poucos podem
se dar ao luxo de comprar. O Gênio, definitivamente, saiu da garrafa. Lá onde
esteja, Paris, Allepo, Bagdá, Damasco, Mogadishu ou Park Avenue, ele sorri
deleitado com a devoção ao seu brilho – seja este faísca de disparo letal, ou
penumbra aconchegante de abajures. O Gênio se esbalda, com a luz acesa em seu
nome.
AUTORA :Marilia Fiorillo é
doutora em História Social pela FFLCH- USP, com pós-doc em Análise do Discurso
pela Pompeo Fabra University e professora de filosofia e ciência política na ECA-USP;
foi editora de política internacional da revista IstoÉ