segunda-feira, 15 de junho de 2015


A vírgula letal


Ela lhe é familiar, muito mais do que supõe o noticiário internacional, você nem a nota, pois ela é apenas um adorno da notícia. Inconfundível, porém: aquele carregador curvilíneo, que a distingue da maioria dos fuzis de assalto. A vírgula letal.

 

A AK-47, com a qual você se defronta com a mesma frequência com que assiste a partidas de futebol, é mais conhecida como Kalash. O apelido carinhoso pegou tanto que o jornal Le Monde noticiou, recentemente, que em Marseille a rapaziada usa T-shirts impressas com ela (logo substituirá o ícone Che). O verbo “kalacher” é sinônimo de estar enturmado numa gangue adolescente prestigiosa.

Em Moscou, no maior parquinho de diversões, Kalashs de plástico disputam com ursinhos de pelúcia e Mickey Mouses a honra de brinde para o vencedor. Menos divulgado, e mais sintomático, é o fato de vários meninos na África terem sido batizados com este prenome: Kalash.

Sim, ela é pop. Sim, é a máquina de matar mais eficaz na história da humanidade. Uma arma que, às vésperas de seu 68 º aniversário, extermina um quarto de milhão de pessoas por ano. Em toda sua modéstia tecnológica, barata e onipresente, ela é a verdadeira arma de destruição em massa. Inventada em 1945 por um pacato engenheiro militar, o tenente Mikhail Kalashnikov ( morto em dezembro de 2013) , a ‘Avtomat Kalashnikov’ nasceu democrática, como uma arma do povo, para o povo, capaz de f uncionar em quaisquer mãos: em ambientes gelados ( URSS), úmidos ( como o Vietnã), desérticos ( regiões africanas e a Ásia Central), incólume a chuva, lama ou deserto. Pode ser enterrada na areia por anos a fio, desencavada, e mal precisa de limpeza para começar a disparar. Idem em pântanos: ela sai da água como um anfíbio perfeito, tinindo para cumprir sua tarefa. Há uma virtude proteica na Kalash que a torna a Número Um. Sua incomparável resistência, facilidade de manejo e longevidade dão- lhe uma olímpica superioridade.

Ser simples tem suas vantagens. Transações ilícitas tem muito mais liquidez no mercado. È assim que supostos grupos rebeldes obtém armas de fornecedores, digamos, independentes, e casam à perfeição oferta e demanda. Nos anos 80, a CIA comprou um bocado de AKs fabricadas na China, para equipar os mujahedin do Afeganistão liderados por Osama Bin Laden ( então um aliado dos americanos) em sua jihad contra a presença soviética no país.Levantamentos da Anistia Internacional e da Oxfam afirmam que este comércio ilícito de armas é irreversível. A China , hoje ( como em tudo, aliás, vide bolsas Louis Vuitton),é a campeã de fabricação.Foi só em 1956 que a Kalash delineou os contornos definitivos de sua personalidade futura, a de artefato sob medida para o vale-tudo da barbárie — quando Khrushchev despachou o Exército Vermelho para reprimir o levante pró-democracia em Budapeste. Nos anos da Guerra Fria, ela se tornou o maior presente da Rússia a seus afilhados ou apadrinhados, e grátis.

Em termos de realpolitik, cada uma das superpotências passou a fornecer sorrateiramente armas mortíferas convencionais a seus aliados. Este é o ponto de inflexão, a gestação da nova persona que chegou às T-shirts: o fuzil de assalto AK(dos 500 milhões de armas de fogo em todo o mundo, cerca de 100 milhões são da família Kalashnikov) era grátis, quando fornecido pela URSS.

Se retrocedermos à história da Kalash, ela é um dos mais ambivalentes ícones: inicialmente, foi sinônimo da luta do pequeno contra o grande, do oprimido contra o opressor, de David contra Golias, para se transmutar, atualmente, no emblema do genocídio, à disposição de psicopatas, fundamentalistas e tiranos, onipresente nas matanças contemporâneas: Síria, Chechênia, Uganda, República Centro-Africana, Iraque.

Décadas atrás, a Kalash soava a Che Guevara e idealismo, aos intrépidos combatentes das lutas de libertação terceiro-mundistas, à resistência popular. Está desenhada na bandeira de Moçambique, após a vitória contra os colonialistas portugueses. É o emblema do Timor Leste. Decora a bandeira do Hammas. A Kalash foi um dos pontos de inflexão da vitória dos resilientes vietnamitas contra o maior poderio militar do mundo, os EUA, na guerra do Vietnã.

AAKera, e é, imprecisa, desengonçada, insegura para seu portador, e exatamente por isso perfeita para o trabalho. Pois o X da questão, na guerra contemporânea, não é a precisão, e sim a capacidade de destruição.

A guerra do século XXI, muitos profetizam, será a crônica da morte já anunciada em finais do XX: a proliferação ad infinitum de guerras locais, étnicas, religiosas, sectárias, tribais, de confrontos exponencialmente mortíferos — é neste solo propício que se edifica a globalização, inclusive dos interesses da indústria bélica. Nos confrontos do século XXI, o simples, barato e disponível ganha longe do caro e complicado. A arma ideal, paradoxalmente, é a mais a simplória: tosca, barata, obstinadamente resiliente.

Em calmaria, a AK é uma pechincha: US$ 10 ou US$ 15 dólares, ou um saco de milho. Quando a carnificina começa, a lei da oferta e procura prospera, e ela se torna mais cara.

Sua imprecisão é perfeita neste novo teatro da guerra.Cada tiro é menos certeiro, mas mais vale a quantidade de tiros abatendo mais gente, demandando mais armas para abater os abatedores. O círculo virtuoso. Cliente morto, cliente posto. A Kalash é o suprasumo do ideal igualitário, pois equivale quem mata e quem morre: todos são dispensáveis, dos snipers dos esquadrões de extermínio às inocentes vítimas civis.

Tão poderosamente ubíqua é a Kalash que ela já penetrou, bem longe da selva e da savana, em jantares elegantes de uma Park Avenue. Além de pop, a Kalash é cult e chique. Um jantar politicamente correto da Park Avenue pode ser regado a Vodka marca Kalash ( mais cara que a Stolichanaya Premium) e as mesas de canto do anfitrião serem decoradas por luminárias Kalash do renomado designer Philippe Starck (a base, estilizada, imita a arma), uma peça que poucos podem se dar ao luxo de comprar. O Gênio, definitivamente, saiu da garrafa. Lá onde esteja, Paris, Allepo, Bagdá, Damasco, Mogadishu ou Park Avenue, ele sorri deleitado com a devoção ao seu brilho – seja este faísca de disparo letal, ou penumbra aconchegante de abajures. O Gênio se esbalda, com a luz acesa em seu nome.

 

 

AUTORA :Marilia Fiorillo é doutora em História Social pela FFLCH- USP, com pós-doc em Análise do Discurso pela Pompeo Fabra University e professora de filosofia e ciência política na ECA-USP; foi editora de política internacional da revista IstoÉ