Em discurso durante
funeral, Obama toca fundo no racismo dos EUA
Foi um momento de
pura emoção. Foi com música que o presidente conseguiu, em Charleston, dizer
muito mais a respeito deste que é um conflito central na sociedade americana
Heloísa Villela heloisa.vilela@brasileconomico.com.br
Principal orador do enterro do pastor e senador Clementa Pinckney, Obama
se valeu do momento de destaque diante da comunidade de Charleston e de todo o
país para mergulhar no debate a respeito do racismo. Um debate que sacode os
Estados Unidos novamente há mais de um ano. Um debate recorrente. Obama pregou
a união diante da tragédia. Porém, bem mais do que o discurso, foi a cadência
de sermão de igreja batista, foi o fato de se basear nesta tradição
afro-americana, e o encerramento inusitado do discurso que ecoaram na alma da
população.
Obama ficou em silêncio por alguns segundos. Os olhos dos presentes
grudados nele, pendurados naquele silêncio finalmente rompido com duas
palavras: “amazing grace”, ou graça extraordinária. Outros segundos de silêncio
profundo foram quebrados apenas pela repetição das mesmas duas palavras, com
ênfase em extraordinária. Em seguida, o presidente começou a cantar à capela a
tradicional “Amazing Grace”, quase um hino espiritual dos Estados Unidos.
Diante da surpresa, a plateia aos poucos se levantou e fez coro. Foi um momento
de pura emoção. Foi com a música que Obama conseguiu dizer muito mais a
respeito deste que é um conflito central na sociedade americana.
Nada mais perfeito para o momento que o país atravessa do que a estreia
do filme sobre a vida de Nina Simone. A cantora e compositora negra, nascida na
Carolina do Norte dos anos 30, já era um talento musical indiscutível aos três
anos de idade. Ela cresceu na época em que os negros já se impunham na música
popular dos Estados Unidos. Mas continuavam banidos da música clássica. E Nina,
até então Eunice Waymon, queria mesmo ser concertista. Tocar Bach no Carnegie
Hall. Um sonho que nunca foi possível realizar.
Nina Simone tinha outros desafios pela frente. Com o piano, ela deu voz
à dor, à revolta e ao pavor de quem vive sem lugar dentro da própria casa. Ao
horror de ser sempre um outro, um estranho no país dos brancos. O filme
acompanha toda a trajetória da vida da cantora. Todos os altos e baixos, que
não foram poucos. Mas se depara com mais atenção nos anos 60. No encontro entre
a dor que ela sempre carregou na alma com a dor evidenciada na luta pelos direitos
civis. E foi nessa luta que Nina Simone encontrou propósito. Como mulher. Como
negra. Como americana. E como artista. Ela era tudo isso ao mesmo tempo, o
tempo todo.
Em entrevistas que o filme recuperou, Nina Simone conta que disse a
Martin Luther King: “Eu não sou não-violenta”. Ela era inteira e visceral.
Reagia com a alma às injustiças, que nunca tinham apenas a perspectiva coletiva
mas também a individual. Sempre a alma, a dimensão humana, diante de tudo, à
flor da pele. Foi Nina quem teve coragem de dizer ao mundo “Mississippi
Goddam”, que seria algo como “P--- que p---- Mississippi”, logo após o
atentando à bomba, em 1963, que matou quatro meninas negras em uma igreja
batista de Birminghan, no Mississipi. A igreja era ponto de encontro dos líderes
do movimento de direitos civis.
Mississippi Goddam é o título da música que ela compôs após o atentado.
Não basta ler a letra que fala: “Piquetes, boicotes, tentam dizer que é tudo
plano comunista. Tudo que eu quero é igualdade para minha irmã, meu irmão, minha
gente, para mim”. É preciso ver e ouvir Nina cantando.
Em menos de vinte quatro horas após o assassinato de Martin Luther King
ela escreveu “Why?” (Por que?). Difícil traduzir os versos, mas eles dizem que
não adianta derramar lágrimas pois elas não vão mudar nada. Diz que é preciso
reagir. E termina:
“Ele viu o topo da montanha, e sabia que não podia parar.
Sempre vivendo com a ameaça de morte adiante.
Pessoal, vocês devem parar e pensar.
Todo mundo sabe que estamos por um triz.
O que vai acontecer agora que o Rei do Amor está morto?”
A pergunta continua pairando no ar.
Sempre vivendo com a ameaça de morte adiante.
Pessoal, vocês devem parar e pensar.
Todo mundo sabe que estamos por um triz.
O que vai acontecer agora que o Rei do Amor está morto?”
A pergunta continua pairando no ar.
Antes do filme sobre a viva de Nina Simone, o cinema apresentou um
curta. Um mini documentário com depoimentos de jovens afro-americanos a
respeito de nascer e crescer nos Estados Unidos. São rapazes que hoje têm 13,
15, 20 anos. Um deles diz que sempre conta quantos segundos se passam entre a
mulher branca avistá-lo vindo em direção contrária na calçada e apertar a bolsa
contra o corpo com mais força, ou atravessar a rua. Outro diz que ele mesmo
muda de calçada para evitar constrangimentos. Não é fácil sair de casa com pena
da mãe, conta outro, porque ela vive com o medo constante de que a polícia,
encarregada da segurança de todos, tire a vida do filho. Não são poucos os
casos...
Na última semana, a Suprema Corte americana legalizou o casamento gay em
todo o país. As comemorações se multiplicaram aqui e no mundo. Derrubar um
preconceito espalha uma onda de otimismo generalizada. Passados os anos 60,
suas lutas e conquistas, Nina Simone ainda perguntava em uma entrevista:
direitos civis? Que direitos civis? Com certeza, faria a mesma pergunta ainda
hoje.