segunda-feira, 8 de junho de 2015


'O presidencialismo de coalizão já terminou', afirma Tarso Genro

Um dos principais quadros do PT, o ex-governador do Rio Grande do Sul diz que o atual sistema político se esgotou após governo Lula

Eduardo Mirandaeduardo.miranda@brasileconomico.com.br

Como o sr. vê a atual conjuntura política do Brasil?

O governo, por condições políticas muito características, pelo tipo de coalizão que dá sustentação a ele, está aplicando as mesmas medidas que todos os governos aplicaram até agora para enfrentar esse tipo de crise. Medidas de ortodoxia econômica e financeira que partem do pressuposto de que a única forma de combater a inflação e revigorar a saúde financeira do Estado é reduzindo o crescimento, cortando despesas sociais, tratando a questão como puramente orçamentária. Isso, na minha opinião, é um equívoco. Pode, em médio prazo, retomar o crescimento, mas retomará apenas recuperando aquilo que vai se perder, como retração econômica ou eventual estagnação desse período. Isso leva a uma série de consequências políticas, mudando a base parlamentar do governo e gerando na sociedade um estranhamento em relação àqueles contingentes que elegeram a presidenta Dilma.

Qual seria a alternativa?

A esquerda, a centro-esquerda e o centro democrático precisam saber se reinventar. Se a única forma de combater crises financeiras é essa que está aí, a esquerda, a centro-esquerda e o centro progressista não se justificam, porque daí se confirma a velha tese tatcherista de que não tem alternativa. Ou seja, quem paga a crise são sempre aqueles que mais precisam de políticas públicas, que mais precisam de políticas sociais e que mais precisam de desenvolvimento e de emprego. A reinvenção da esquerda passaria por uma concepção de como sair de uma crise dessa natureza. Na minha concepção, é preciso reestruturar o sistema tributário, reescalonar as alíquotas de Imposto de Renda, instituir taxação das grandes fortunas e das grandes heranças, para que pelo menos os efeitos da recomposição econômica e da retomada do crescimento sejam distribuídos para toda a sociedade, e que as penas também sejam distribuídas para todos.

Há expectativa de que essa reestruturação tributária venha do ministro da Fazenda, Joaquim Levy?

Por circunstâncias políticas, acho que não. E isso nem é o gosto pessoal da presidenta Dilma, não é compatível com o discurso que ela fez para se eleger. Acho que o que vai ocorrer é uma retomada tímida do crescimento mais adiante, o que vai recuperar parte das perdas econômicas e do decrescimento que está havendo neste momento. Medidas ortodoxas como essas são como a pasta de dente fora do tubo. Depois que ela sai, não volta mais para dentro, porque ela cria uma base social, que é o sustento, e uma base parlamentar, que também lhe dá sustentação. Quanto me reporto à situação nacional, estou pensando, na verdade, sobre o que vai ser o meu partido, o que vai ser a esquerda, o que vai ser o centro democrático progressista depois da crise. Acho que essas medidas (do ajuste fiscal) não serão alteradas no curso do governo da presidenta Dilma.

O sr. acredita que vivemos uma consequência da gestão de Guido Mantega, pelo longo prazo das políticas anticíclicas?

Acho que essas desonerações de longo curso foram incorretas, são medidas contracíclicas que perduraram por muito tempo de maneira equivocada. Isto não é uma responsabilidade pessoal do Guido, que foi um grande ministro. Isto é um desequilíbrio no próprio projeto de desenvolvimento que nós implementamos a partir do governo do presidente Lula e que chegou ao seu limite. Não soubemos ver onde era esse limite. As reformas que foram feitas no governo do presidente Lula e o ciclo de desenvolvimento que ele promoveu se realizou de maneira plena. Não é que ele não deu certo. Ele se esgotou justamente porque deu certo. E era necessário que num determinado momento se reestruturasse esse programa de desenvolvimento, esse projeto de crescimento, para dar sustentabilidade no momento de mais agressividade da crise internacional. Isso não foi feito. Então, não é correto atribuir ao Guido, à presidenta Dilma ou mesmo ao presidente Lula a responsabilidade do que está acontecendo. Isso aí é todo um complexo político, de sustentação do parlamento, de articulação da coalizão que não permitiu que se reagisse na hora adequada.

O sr. atribuiu a questão econômica à política, sobretudo por conta da base aliada. O presidencialismo de coalizão está em crise?

O presidencialismo de coalizão já terminou. Como ministro da Coordenação Política, fui organizador da coalizão no mandato do presidente Lula. Essa coalizão deu enorme estabilidade para o presidente Lula governar no seu segundo governo, o melhor governo que tivemos até agora. Ela se justificou plenamente, mas agora se esgotou. O modelo de desenvolvimento que lhe dava racionalidade se superou, ele não mais corresponde às necessidades do país hoje, em função da crise mundial. O que nós, da esquerda — que queremos uma hegemonia democrática sobre um novo projeto para o país — temos que fazer é reestruturar a frente política que dará sustentação para um novo ciclo no futuro. É o que me preocupa atualmente. Por isso, queremos criar uma nova frente política para governar o país a partir desse novo período. Isso significa criar um sistema de forças na sociedade, em setores importantes do empresariado, em setores médios, nas classes trabalhadoras, no setor produtivo do campo e da cidade, para que a gente possa ter um novo ciclo de desenvolvimento. Essa nova frente política precisa ter uma visão programática diferente da atual.

Mas essa frente, caso venha a governar, seria também uma coalizão?

Não, seria semelhante à Frente Ampla do Uruguai, teria que ter uma mesa diretora, um programa de compromisso e uma capacidade de condução do governo, e não ser apenas o respaldo do governo, como é a coalizão atualmente. A coalizão atual passou a ser praticamente parlamentarista, exercendo no governo uma influência sem compromisso programático.

O problema do presidencialismo de coalizão também não está no peso do PMDB no governo?

Os partidos são reflexo do sistema político, não é correto colocar a culpa no PMDB. A hegemonia do PMDB sobre o governo é reflexo do padrão de democracia política que nós temos, do nosso sistema partidário e do nosso sistema político, porque é um partido que vem desde a história do regime militar e que hoje não tem a mínima unidade em nenhum ponto fundamental, não tem liderança superior que o agregue, é um partido totalmente regionalizado que se constituiu em cima da luta pela democracia política. O PMDB é produto desse processo distorcido, e não o responsável por ele.

No entanto, dá a almejada governabilidade...

Ele é a base da governabilidade hoje no país. É assim com o governo Dilma e seria com qualquer outro governo, com Aécio Neves, com José Serra ou com Geraldo Alckmin, porque o PMDB é essa rede de interesses regionais que dá suporte a qualquer governo que o acolha. Essa é a deformação do nosso sistema. Culpar o PMDB e suas lideranças é uma visão imediatista que perde a dimensão histórica do nosso processo democrático, que também chegou ao seu limite. Essa deformação poderá comprometer o futuro e, inclusive, a saúde da democracia brasileira.

A que se atribui essa independência de um Congresso que impõe derrotas ao Executivo?

A relação estabelecida com determinado tipo de governo se esgotou. Isso leva o PMDB a estar mais dividido e, portanto, a se articular para pressionar mais o governo em função desses interesses fracionários. Tanto é verdade que nem mesmo a pressão do PMDB é uma pressão unitária, ela é fragmentada em diversas lideranças e em diversos interesses. É o que tem ocorrido, seja na reforma política, seja na apuração dos casos de corrupção, ou na questão das terceirizações. Não creio que essa questão possa ser resolvida a partir da análise de independência do Congresso. Depois da Carta de 1988, o Congresso sempre foi independente e faz o movimento que reflete o interesse das maiorias que são formadas.

Na maioria dessas questões, sobretudo nas que a Câmara tem colocado, há uma tendência conservadora?

Sim. O PMDB conseguiu construir uma maioria conservadora no Congresso. Essa maioria conservadora está retratada não apenas nos temas que se referem aos direitos da cidadania, às questões relacionadas com a condição sexual das pessoas, aos interesses do mundo do trabalho, como também à negativa de se fazer uma reforma política séria. Tudo isso está pautado por esse arco conservador que o PMDB dirige e orienta em cada tema, mas sempre de maneira fragmentada e negociada internamente.

A reforma política feita recentemente é uma contrarreforma?

Não há reforma política. Essa resposta tem relação com o que eu falei anteriormente. É uma série de coisas fragmentárias que foram votadas que não comportam a reforma de um sistema. São apenas votações pontuais de interesses fracionários que unificam a maioria num determinado momento e que não têm nenhuma coerência entre si. Não há uma reforma política, há acordos pontuais para votar determinados temas que podem pacificar essa base majoritária que é composta pelo PMDB.

A falta de unidade partidária do PMDB tem correspondência com o desejo de ver o distritão aprovado?

A proposta do distritão foi uma aventura, uma tentativa de oligarquizar ainda mais o sistema político brasileiro. Era uma coisa tão agressiva, tão conservadora e tão manipulatória que não chegou a conseguir maioria. Acho que esse foi um erro político do Eduardo Cunha, mas um erro político feliz para um país que não aceitou esse tipo de proposta aparentemente reformadora, mas profundamente reacionária.

O distritão é uma resposta às avessas às manifestações apartidárias de junho de 2013, na medida em que atenta contra a vida partidária?

Não interessa à maioria do Congresso dialogar com os movimentos, porque a reprodução da sua força local, regional, se dá a partir desses interesses fracionários. E os movimentos não tiveram nenhuma influência positiva, infelizmente, para colocar o Congresso a serviço das discussões sobre o futuro do país. Qual é a resposta que o Congresso deu, por exemplo, à questão da saúde? Nenhuma. Veja a questão do transporte nas grandes regiões metropolitanas. O que discutiu o Congresso sobre isso? Absolutamente nada. O Congresso não está dando a mínima para o que aconteceu nas ruas, ele foi eleito sob o influxo do sistema político que está desenhado para que ele reproduza os seus próprios interesses. Eu duvido que eles façam uma reforma que prejudique suas próximas eleições, como no ponto do financiamento de campanha.

Além da questão do fim do financiamento por empresas, que outros pontos o sr. proporia?

Defendo a verticalização das alianças, a proibição de “venda” de tempo de televisão, a votação em lista, mas o fim do financiamento empresarial das campanhas é o ponto mais importante.

Parece que a única mudança de impacto foi o fim da reeleição...

O fim da reeleição com mandato de cinco anos pode ser positiva, mas que não vai fazer muita diferença se não mudarem o sistema político que está aí.

Cinco anos é um tempo hábil para um presidente da República governar?

Num cenário de mudança do sistema político e de reforço dos partidos que possam estabelecer compromissos programáticos, é possível que seja positivo. Agora, num cenário fragmentário, não terá solução nem com cinco, oito, nem com dez anos.

Como o sr. avalia o gesto de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) de não colocar a reforma política em plebiscito, mas dizer que o fará com a redução da maioridade penal, sabendo que a tendência da maioria da população é pelo “sim”?

O pensamento majoritário da sociedade, quando está sediada pela criminalidade, é muito simplista. Ela tende a acreditar que mais repressão e mais pena, seja para quem for, vai reduzir a criminalidade. Como todas as pessoas que não têm um projeto de visão de mundo estabelecida, de como quer o futuro da sociedade, o programa ou a utopia que defende, Eduardo Cunha vai ao sabor dessas circunstâncias. Quando ele se nega a plebiscitar a reforma política e se dispõe a plebiscitar a redução da maioridade penal, ele está especulando com essa situação. É perfeitamente natural que as pessoas assediadas pela violência, principalmente nas grandes regiões metropolitanas, tenham uma visão imediatista. É o mesmo que colocar em consulta popular se a taxa de juros deve ser de 10% ou de 0,5%. Sabemos qual é a resposta, será 0,5%. De uma maneira muito oportunista e esperta, é isso que Eduardo Cunha faz.

À parte os dados sobre violência nos grandes centros urbanos, a representação que se faz dela na mídia evoca uma cultura de medo na população?

Em geral, trata-se de uma vocação autoritária da televisão no Brasil, que é oligopolizada, que cultiva a notícia da violência e a estética da morte, porque isso é uma forma de dominação do sentimento das pessoas. Não se promove uma cultura de paz, de solidariedade, de justiça e de comunidade. Isso é muito característico de determinados momentos de decadência do projeto democrático moderno e já aconteceu na Itália. Na Marcha sobre Roma, o Mussolini disse uma frase que é síntese dessa visão: “A ação enterrou a filosofia”. Em última instância, isso significa dizer que se você mantém uma sociedade atemorizada, mesmo que as notícias sejam verdadeiras, você tem mais controle sobre a emoção das pessoas. Sou contra a censura, mesmo nessas circunstâncias, mas acho que o Ministério Público deveria ter uma atenção maior para verificar se esses sistemas estão cumprindo as finalidades que a Constituição lhes determina.

Ocorre o mesmo na política?

Sim. Se você desmoraliza todos os líderes políticos, partidos e movimentos sociais indistintamente, fica quem? Fica a opinião do editor, desses grandes noticiários e cadeias de comunicação. A destruição da política não é a destruição como totalidade social, é a destruição da política na sua própria esfera. Ela é substituída por um líder carismático, por um “duce” novo ou por um “duce” tecnológico, que hoje é o grande sistema de comunicação que orienta a vida política e que faz a agenda do país. A agenda do país, hoje, não é feita pelos partidos, é feita pela televisão. Se você vem de outro planeta, cai no Brasil e vê a televisão, vai achar que o Brasil é um país de corruptos. Isso é uma fraude. Corruptos estão em todos os lugares: nas famílias, nas empresas, na política, nos partidos, nas religiões. Mas a corrupção não é dominante.

O senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP) disse, em entrevista ao Brasil Econômico na semana passada, que o PT errou, ao promover a ascensão econômica da população apenas pelo consumo. O sr. concorda?

Ele tem razão em parte. A forma através da qual se inclui as pessoas na sociedade de classes e melhora a sua situação é pelo consumo, pela educação e pela cultura. Mas o consumo é o predominante. Isso gera novos sujeitos sociais. E se eles não têm uma mensagem agregadora, comunitária, eles se portam como meros consumidores, e não como cidadãos. Isso é perfeitamente natural numa sociedade capitalista que tem um determinado surto de desenvolvimento. A grande revolução que o Lula fez no país foi reestruturar a sociedade de classes e colocar milhões de pessoas no consumo. Isso gera um processo político instável e indeterminado, porque essas pessoas não passaram por uma vida política cidadã que lhes desse uma visão de comunidade. Cabe a uma nova esquerda recompor essas relações e reorganizar essas utopias para que as pessoas compreendam que seu ascenso social é um ascenso que se deve ao conjunto da sociedade, e não exclusivamente em relação ao seu esforço pessoal, que é determinante, mas não é exclusivo. Então, essa debilidade existiu, mas não vejo como um problema, vejo com um avanço que nós temos que responder daqui para diante, que é o seguinte: esses novos sujeitos que estão aí, o que eles querem da vida, o que querem do futuro e o que querem para os seus filhos? O neoliberalismo não tem resposta para isso, embora aparentemente se possa achar que eles tenham.

Esses problemas não são inerentes do sistema em que vivemos?

São. E esse é o grande impasse das esquerdas hoje, não somente aqui no Brasil. Vivemos num mundo em que se destruiu a ideia do comunismo, do socialismo democrático e está se destruindo os padrões de convívio da social democracia. A força normativa que tem, hoje, o capital financeiro sobre a estrutura do Estado e sobre os direitos nos países, substituindo as constituições e impondo políticas como se não houvesse nenhuma outra alternativa, são questões que não estão respondidas. Sempre digo para os colegas mais esquerdistas que o que está em jogo hoje não é o socialismo, é a democracia, porque ela vem sendo ressecada e destruída na sua carnalidade, em função<MC0>, inclusive, da perda de objetivo dos processos eleitorais. Todos que chegam no governo ficam mais ou menos balizados por algumas diretrizes que são impostas de fora para dentro, como essa questão do ajuste. Quando combatemos esse tipo de ajuste, estamos defendendo que a democracia tem que construir saídas políticas mais adequadas para a crise, onde a política se combine com a economia, e não a economia se transforme imediatamente em decisão política. A economização e a financeirização da política é a destruição do tecido democrático. Essa hoje é uma questão de todo o mundo. Não é à toa que as desestabilizações estão ocorrendo em todo o mundo e entram na América Latina de maneira acelerada.

A frente envolve partidos, é suprapartidária? É nacional?

É preciso relativizar um pouco esse mito em relação à questão da frente, porque hoje existem diversos movimentos em diferentes lugares e bases sociais que estão se encaminhando para a mesma direção. Apenas aponto o Rio de Janeiro como base importante porque ele é hoje um lugar estratégico de irradiação de políticas no país, ele tem uma tradição democrática e uma cultura política muito forte, libertária e democrática, tem lideranças como Alessandro Molon no PT, Marcelo Freixo no Psol, Jandira Feghali no PCdoB, Roberto Amaral no PSB, sem falar nas lideranças importantes dos movimentos sociais. Eu sou apenas um inspirador dessa ideia e estou junto com outros companheiros trabalhando por isso.

O que a frente democrática apresentará no 5º Congresso Nacional do PT, que acontece esta semana em Salvador?

No congresso estadual do PT do Rio Grande do Sul, por proposição da Mensagem (corrente política de Tarso Genro no PT), com acolhimento unânime de todas as posições partidárias, aprovamos uma resolução política que vai exatamente na direção da organização, para o futuro, de uma nova Frente Política, com as mesmas características que eu e outros companheiros defendemos perante os movimentos sociais e partidos do campo democrático da esquerda.

O sr acha que o presidente Lula tem condições de disputar a eleição de 2018?

Já falei com ele sobre isso. Ele não diz nem que sim, nem que não. Acho que ele faz muito bem em adotar essa posição. O Lula tem uma responsabilidade muito maior do que a sua relação com o PT, inclusive no esforço de dar estabilidade para a presidenta Dilma governar. Eu, por exemplo, não concordo com o ajuste, mas estou disposto a dar condições de governabilidade. Não tenho influência nenhuma para isso, mas no que depender de mim, quero ajudar. O Lula inspira essa posição. Não descarto que ele possa se apresentar, mas isso será discutido, evidentemente, depois de 2016.